“Amar o que se move”
Um reflexo sobre o amor que muda com o tempo — e sobre a beleza de deixar que ele se transforme junto com a gente
Esses dias, em uma sessão de terapia, conversávamos sobre o amor. A paciente me perguntou se amamos, de fato, a pessoa — ou se amamos aquilo que ela nos oferece naquele tempo, naquele espaço, naquela forma de ser. Foi um daqueles momentos em que a pergunta se alonga dentro do silêncio e devolve mais do que uma resposta: devolve um espelho.
Percebemos, juntas, que o amor talvez não seja sobre o outro em si, mas sobre o que a relação desperta e sustenta em nós. Amamos a experiência que o encontro provoca. Amamos o que se acende quando alguém nos toca — e, muitas vezes, o que permanece mesmo depois que esse toque cessa.
Mas então, o que acontece quando o tempo muda o corpo, o olhar, a voz e o gesto? Quando a pessoa já não é mais quem foi — e nós também não somos mais quem éramos?
As pessoas mudam. O amor também. Ele se desloca junto ou se perde nas frestas do que já não cabe. O que um dia foi refúgio pode se tornar ruído. E isso não quer dizer que o amor acabou — talvez ele apenas tenha se transformado, tomado outra forma, buscado outro espaço para respirar.
Em muitos relacionamentos abusivos, essa confusão se intensifica. A pessoa acredita que ainda ama o outro, mas, no fundo, ama a lembrança de quem o outro foi. Ama o que um dia sentiu. Ama a promessa. Ama o pedaço bom que resistiu entre tantos maus. E isso é humano. Nossa mente tenta preservar o amor como se ele fosse algo fixo, mas o amor — como a vida — é fluxo.
bell hooks, em All About Love, diz que “amar é um ato de vontade — tanto uma intenção quanto uma ação”. Ou seja, não basta o sentimento: é preciso escolher amar, renovar o gesto, acompanhar o movimento. Se eu te amo apenas na forma em que te conheci, não amo você — amo a lembrança de um tempo. Amar o outro é também amar o que ele se torna, mesmo quando essa transformação nos desconcerta.
Na psicologia, especialmente nas abordagens existenciais, fala-se muito da autenticidade — esse compromisso de ser fiel ao próprio vir-a-ser. Quando um dos dois decide continuar se transformando, e o outro deseja manter tudo igual, o amor se torna prisão. É por isso que tantos vínculos adoecem: porque confundem permanência com profundidade.
O amor verdadeiro, se é que há um nome para isso, talvez seja o que respira junto com a mudança. O que aceita o risco da distância para permitir a continuidade do ser. Amar alguém, então, é também aceitar perdê-lo — se for o caso — para que cada um possa seguir inteiro.
E é bonito pensar que, mesmo quando acaba, o amor não se perde. Ele deixa vestígios em quem fomos. Ele continua em cada escolha de gentileza, em cada gesto de cuidado que aprendemos a cultivar.
Talvez amar seja, no fundo, isso: reconhecer o outro como movimento. E, no espelho dessa presença, continuar escolhendo, todos os dias, permanecer em amor — ainda que o amor tenha mudado de forma, de rosto, de casa.
MATÉRIAS RELACIONADAS:



