As muitas verdades no cotidiano digital
Entre crenças, fatos e interpretações, o desafio está em exercitar o olhar crítico diante das múltiplas verdades
Faço parte de vários grupos de WhatsApp, assim como a maioria das pessoas hoje. Nesse ambiente, circulam diariamente notícias que, em um primeiro momento, parecem verdadeiras e logo em seguida são questionadas como mentiras. Essa dinâmica me faz refletir sobre a noção de verdade.
Na Psicologia, falamos que existem diferentes camadas: a “minha verdade”, a “verdade do outro” e aquilo que chamamos de “a verdade”. Mas até que ponto essa verdade absoluta existe?
Quando se discute política, religião ou futebol, percebo que mais do que fatos, estão em jogo valores, crenças e ideologias. Ou seja, não se trata apenas de constatar se algo é verdadeiro ou falso, mas de reconhecer que cada indivíduo se ancora em referenciais próprios para sustentar aquilo que acredita. Para uns, a “metade cheia do copo” é o que importa; para outros, a “metade vazia”. E talvez nenhum dos dois esteja absolutamente certo — ou errado.
Um exemplo recente ilustra bem esse dilema. Surgiu nos meus grupos de Psicologia a discussão sobre os riscos do uso de paracetamol durante a gravidez, associado por algumas pesquisas ao aumento de possibilidades de neurodivergências no feto. O debate foi intenso. Havia quem considerasse uma mentira, outros defendiam como verdade inquestionável. A minha primeira pergunta foi: quem leu o artigo original? A segunda: o estudo tinha validade científica, foi publicado em revista reconhecida, passou pela comunidade científica dominante?
O curioso é que a maioria se calou. Uns não tinham lido, outros não haviam verificado a validade. Isso me fez pensar sobre como reagimos a notícias: aceitamos ou recusamos sem, muitas vezes, realizar o processo básico da análise crítica. É mais fácil se apegar ao que confirma nossas crenças do que se abrir ao desconforto de uma possível revisão.
Michel Foucault já nos lembrava que a verdade não é universal e neutra; ela está ligada a regimes de poder e às formas de dominação do saber em cada época. O que é aceito como “verdade científica” hoje pode ser questionado amanhã. Basta lembrar quantas práticas médicas foram abandonadas ou revistas ao longo das décadas. Nesse sentido, a ciência cresce justamente por meio do questionamento. Uma teoria só avança quando outra a refuta ou amplia seus horizontes.
Por isso, quando recebo uma notícia, busco me perguntar: de onde veio? Quem a produziu? A fonte é confiável? A forma como estou analisando é a única possível? Há outras perspectivas? Esse exercício não é apenas metodologia científica — é também vida. Porque viver é lidar com contradições, com diferentes pontos de vista, com a incerteza de não termos todas as respostas prontas.
Se não questionamos, ficamos parados na zona do “eu acho e pronto”. Mas se escolhemos crescer com o conflito e com a dúvida, transformamos cada notícia, cada debate, em uma oportunidade de aprendizado. Mais do que buscar uma verdade única e definitiva, talvez o desafio contemporâneo seja aprender a conviver com a pluralidade das verdades.
MATÉRIAS RELACIONADAS:



