A nossa letra escarlate
Quando o espetáculo acaba, sobra a marca que nunca foi nossa, e o silêncio de sempre
Chegamos ao último ato da tragicomédia. O circo desmonta a tenda, as luzes se apagam, e a vida segue, como sempre seguiu do lado de fora da tenda. Todo circo é assim, respeitável público: o espetáculo termina, e a realidade recomeça.
Há muito a COP perdeu o sentido; e, mais do que isso, perdeu qualquer senso de realidade. Defende o que ignora, propõe metas inalcançáveis, mas se esquece do principal: o resultado. Uma intenção nobre que não se sustenta na prática, mas mantém um teatro impecável. Entre discursos vazios e contradições em alfaiataria fina, celebra-se um resultado que não existiu. E o saldo? Nulo, ou quase isso.
Diplomatas, negociadores, autoridades comemoram sobre a montanha de lixo que restou em uma cidade que não consegue tratar seu próprio lixo. O esgoto a céu aberto continua lá, mas agora sem circo algum.
Enquanto se anuncia a dificuldade de um acordo para eliminar combustíveis fósseis, o próprio evento opera com geradores a diesel e abriga autoridades em cruzeiros milionários que despejam, sem pudor, toneladas de CO2, sim, esse mesmo que, por ser vilão, temos que eliminar, capturar. Um evento circense em versão diplomática.
Os navios partem em retirada, os crachás são recolhidos, e o que fica para trás não aparece nas fotos multicoloridas tiradas no ato simbólico em meio à floresta. Tapumes esconderam o que havia do outro lado, e seguirão escondendo. Para quem vive ali, nada mudou: o lixo permanece, o esgoto permanece, a promessa também. A COP passa; a vida não.
E é justamente aí que o espetáculo revela sua face mais antiga.
Um ingresso caro, restrito, reservado aos que insistem ouvir especialistas profetizando certezas que mal compreendem e, ainda assim, não hesitam em estampar em nosso peito uma letra em vermelho encarnado. Uma sentença silenciosa, aplicada a quem sequer participou do espetáculo.
O circo desarma, e do pão que restou ninguém se alimenta. A amargura, essa sim, fica com quem vive na borda da cidade, sempre à margem do espetáculo.
Comemora-se um sucesso que ninguém define. Sucesso para quem? À custa de quem? O mesmo evento que fixa preço no hectare de floresta em pé derrubou árvores para abrir uma avenida que leva do nada a lugar nenhum. Esse é o legado imediato: uma estrada vazia, energia garantida pelos fósseis de sempre, e a constatação óbvia de que nada realmente saiu do lugar.
O chanceler alemão poderia ter sido mais diplomático, claro. Mas quem nunca desejou dizer o que pensa, ainda que em forma de desabafo? No fim, o dinheiro quase sempre resolve, ou ao menos cala, principalmente com a promessa de um bilhão a mais no valuation da floresta amazônica.
Ainda tento entender quando redefiniram a palavra “sucesso”. Talvez eu tenha cochilado enquanto marcavam, mais uma vez, a letra no peito dos outros.
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