Entre abandonos e sonhos
Um chamado urgente para enxergar as falhas que condenam vidas à margem
Sátina Pimenta
Sátina Pimenta, psicóloga clínica, advogada e professora universitária
O artigo de hoje é triste. Neste final de semana, recebi a notícia da morte de um jovem de 19 anos, em João Pessoa, que entrou na área de uma leoa no zoo da cidade. Uma tragédia que, para mim, expõe de maneira cruel a realidade vivida por pessoas com transtornos mentais no Brasil.
Eu sempre repito em sala de aula: a negligência governamental mata. E mata mesmo.
O jovem Gerson de Melo Machado — conhecido como Vaqueirinho — teve o poder familiar destituído ainda na infância porque sua mãe e sua família apresentavam transtornos mentais.
Ele era o quarto irmão e o único que não foi adotado. Também foi diagnosticado com esquizofrenia. A vida dele foi, desde cedo, uma sequência de abandonos: abandonos familiares, governamentais e institucionais.
Mas abandonos não impedem alguém de sonhar. Pelo contrário: às vezes reforçam o desejo mais profundo de ser acolhido, de não ser maltratado, de viver uma vida possível.
Uma prima contou que ele gostava de ser preso porque, dentro do presídio, sentia-se acolhido. Ali, dizia ela, ele se sentia seguro para ser quem era. Isso me atravessou. E me lembrou relatos que ouvi quando trabalhei no sistema prisional no Espírito Santo: gente que, na ausência de Estado e de afeto, encontra no cárcere o único lugar de proteção.
Outra reportagem traz a lembrança da vida tutelar que o acompanhou desde a infância. A primeira vez em que foi encaminhado à socioeducação, ainda menino, foi porque vagava sozinho no meio de uma rodovia e foi encontrado pela Polícia Rodoviária Federal. Essa profissional disse que ele tinha um sonho: ir para a África e ser domador de leões.
E ele tentou viver esse sonho — abruptamente, sem planejamento, atravessado pelo transtorno que carregava. Mas ele tentou. Ele lutou para viver. Ele buscou viver seus sonhos: fugia dos abrigos para tentar encontrar a mãe; aproximava-se do risco para experimentar liberdade; buscava o presídio para sentir segurança.
A trajetória dele é cheia de pequenas tentativas de existir.
Um ponto que me chamou atenção foi a referência à solicitação de internação compulsória. Diz-se que o atendimento ambulatorial seria insuficiente. Não tive acesso à decisão judicial ou às datas, mas uma coisa me inquieta: se esse menino está desde os oito anos sob tutela governamental, alguma coisa falhou — e falhou profundamente.
A morte dele é a demonstração mais dolorosa dessa falha.
Sempre digo: não existe ser “totalmente contra” ou “totalmente a favor” da internação compulsória. Existe analisar cada caso concreto, com responsabilidade ética.
Existem situações em que ela não se aplica, e existem aquelas em que a recusa absoluta custa vidas.
O caso de Gerson nos obriga a repensar. A encarar de frente o que temos escolhido não ver. E a lembrar que, por trás de cada diagnóstico, existe alguém que sonha — mesmo quando o mundo insiste em desistir dele.
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