Meu encontro com o Pai da Medicina
Confira a coluna desta terça-feira (17)
No âmago de minha memória, vejo-me entrando pela primeira vez na Escola de Medicina, em março de 1973.
Com a cabeça raspada pelo tradicional trote, repleto de orgulho e entusiasmo, o jovem calouro para diante do busto de Hipócrates, postado no pátio da faculdade, lembrando seu famoso juramento, tão repetido em diversas formaturas. Naquela época, eu era bastante jovem para compreender os ensinamentos do Pai da Medicina.
Embora imaturo, me sentia idealista, sonhando exercer uma medicina sem o pragmatismo mercantil do mundo tecnológico. Meu principal objetivo seria tentar compreender e dirimir o sofrimento humano.
O tempo passou. Nesse meio século, testemunhei profundas transformações na arte médica.
Por ser milenar, a medicina sempre acompanhou e acompanhará a história do ser humano. Diante dessa mistura de arte e ciência, médicos tiveram que se moldar às transformações, com habilidade e perseverança.
Após seis anos de faculdade e 50 de exercício médico, aprendi que a dúvida foi e será sempre a irmã gêmea da medicina. Reconhecer os vácuos de conhecimento é um preceito de sabedoria e coragem.
Lidando com sucessos e fracassos, o médico navega no caudaloso rio da vida, que sempre fustigará seus limites de conhecimento.
Infelizmente, a despersonalização inserida na modernidade, a substituição do ser pela imagem, cheios de pensamentos voláteis e descartáveis, andam contaminando a profissão médica, sufocando-a num excesso de modismos e tecnologias.
Médicos e pacientes devem agir de forma racional, usando as ferramentas científicas sem deslumbramentos, dando mais atenção à observação e ao raciocínio, do que ao automatismo técnico. “Somente grandes paixões são capazes de grandes ações”.
Rejeitando magias e superstições, Hipócrates direcionou a medicina ao rumo científico. Sabedor das suas limitações, ele respeitava a natureza de cada organismo, enfatizando que nenhum tratamento pode causar dano.
A modernidade abriu as portas de um mundo submetido à soberania da tecnologia, e a medicina se inseriu no centro dessa nova realidade, esquecendo o humano, enaltecendo a técnica.
Não obstante o seu indiscutível valor, a tecnologia acabou por produzir um ambiente autômato, subestimando os limites do universo médico.
A ansiedade que corrói o paciente, afeta também muitos médicos, que se refugiam nos exames complementares, por pura insegurança.
Medicina não é ciência pura. Ela se utiliza da ciência para evoluir e gerar conhecimento, mas a sua essência implica lidar com subjetividades que escapam ao ritual tecnicista. Afinal, envolve pessoas, emoções e circunstâncias diversas.
Hipócrates sabia que a verdadeira medicina é uma viagem sensorial pelo organismo humano, tentando prever o imprevisível e evitar o inevitável.
Paradoxalmente, apesar do extraordinário aumento de conhecimento médico, vive-se hoje um estado de maior insegurança e menor satisfação com a saúde. Breve, não sentir nada será algo muito grave.