O que é meu, o que é do outro
Sobre o poder de recomeçar e o amor que começa em si mesmo
Às vezes eu fico pensando como a gente espera. Espera o mundo mudar. Espera o outro entender. Espera um gesto, uma palavra, uma devolução qualquer que faça o coração respirar mais leve. A gente espera — e, enquanto espera, esquece que é no movimento, e não na espera, que a vida se revela.
É curioso como essa espera se disfarça de amor, de cuidado, de esperança… Mas, no fundo, é só medo. Medo de assumir o próprio destino, medo de reconhecer que mudar dói, medo de perceber que talvez o outro não vá nos acompanhar na mudança.
E quando o outro diz “não quero”, “não posso”, “não é pra mim”, a dor vem — não por causa da recusa em si, mas porque ela nos devolve o espelho daquilo que deixamos de fazer por nós.
A psicanálise diria que aí mora a confusão: atribuir ao outro a tarefa de preencher o que é vazio em nós. Como se o outro tivesse o dever de curar o que só pode ser acolhido, não curado. O outro tem a própria travessia, os próprios abismos. E nós temos os nossos.
Mas é mais fácil colocar a culpa fora.
Dizer “ele não me entendeu”, “ela não me quis”, “ninguém me ajuda”.
É mais confortável fazer do outro o vilão do que se reconhecer como o protagonista da própria história.
Uma paciente me ensinou uma coisa linda. Toda vez que a vida parece desabar, ela vai até o espelho, pega o batom vermelho e passa devagar, olhando pra si. Disse que aquele batom é o lembrete de que há um poder que ninguém pode tirar: o de decidir levantar, o de tentar outra vez, o de continuar mesmo quando ninguém vem junto.
Ela chama isso de “meu ritual de recomeço”. E eu acho que é isso mesmo — cada um precisa inventar o seu.
O batom, o café coado com calma, o banho demorado, a caminhada sem rumo.
Pequenos gestos que lembram que a vida é nossa, e o que é do outro precisa ficar com o outro.
Esperar não é o problema. O problema é esperar com as mãos vazias, acreditando que só o outro pode nos preencher.
O amor, o cuidado, a presença — tudo isso é bonito quando soma, não quando substitui.
A psicanálise não ensina a deixar de amar, mas a amar com os pés no chão. A entender que o outro não vem pra nos completar, vem pra nos acompanhar.
E se um dia ele não vier, a vida continua — porque quem está vivo é você.
No fim, talvez a felicidade não seja um lugar onde a gente chega com alguém, mas um caminho que a gente aprende a andar sozinho, até encontrar quem queira caminhar ao lado.
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