Insulina sem registro domina o SUS e governo culpa mercado de emagrecedores
Principais fabricantes do medicamento para diabetes também disputam o bilionário mercado de tratamentos da obesidade

As insulinas sem registro da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passaram a dominar o tratamento oferecido pelo SUS a pacientes com diabetes.
Cerca de 46 milhões dos 67 milhões de canetas e frascos contendo o medicamento entregues em 2025 pelo Ministério da Saúde foram certificados apenas por agências do exterior --uma medida emergencial e que levanta críticas da indústria nacional e questionamentos sobre a qualidade dos produtos.
O ministério atribui a escassez global de insulina à prioridade dada pela indústria para as canetas emagrecedoras. As principais fabricantes do medicamento para diabetes também disputam o bilionário mercado de tratamentos da obesidade. A pasta ainda afirma que seguiu rigorosamente a legislação brasileira e realizou compras emergenciais, sem registro, para evitar desabastecimento.
Em documentos internos de compras do SUS, as farmacêuticas apontam como barreiras para atender a rede pública a alta demanda, baixo preço estimado nas licitações e a decisão de deixar de produzir modelos mais antigos de insulina, como as humanas.
As respostas são de empresas estrangeiras como a Novo Nordisk, Eli Lilly, entre outras, além do laboratório nacional EMS, que têm registros de insulina e também atuam no mercado dos emagrecedores.
Principal fornecedora global de insulina, a Novo Nordisk disse à reportagem que não existe conexão entre a descontinuidade de gerações antigas de insulina e o fornecimento de medicamentos para obesidade. A empresa, que é fabricante do Ozempic e do Wegovy, diz que está modernizando as linhas de tratamento, inclusive para diabetes.
A farmacêutica acrescentou que cumpre rigorosamente todas as entregas de insulina alinhadas com o governo federal e que antecipou, no ano passado, cerca de 90% do previsto para 2025, "mesmo num momento em que enfrentamos um aumento global de demanda pelo medicamento e restrições de produção interna".
Em 2025, a empresa entregou cerca de 20 milhões de frascos e canetas. O volume é inferior a um terço do total repassado pelo ministério ao SUS, segundo dados obtidos por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
A principal fornecedora de insulina do SUS neste ano é a GlobalX, que soma contratos de R$ 642 milhões pelo produto e distribuiu cerca de 40 milhões de frascos até setembro, além de 2,9 milhões de canetas reutilizáveis. O ministério já determinou a troca de 50 mil canetas após receber uma série de reclamações sobre falhas e quebras, além de encontrar peças em caixas amassadas.
"Se a pessoa tem diabetes tipo 1, ela não produz insulina nenhuma. Então, um dia sem pode ser fatal. Se você fornece uma insulina com caneta que está com defeito, como é que se aplica?", afirma Solange Travassos, vice-presidente da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), sobre o cenário de dependência dos produtos sem registro.
Em nota, o ministério disse que a redução da oferta está relacionada aos produtos de emagrecimento, mas não citou uma farmacêutica específica. "A redução da oferta de insulina no Brasil e no mundo ocorre, principalmente, pela prioridade que as empresas estão dando a produtos mais rentáveis, como as canetas emagrecedoras", disse a pasta.
O ministério também disse à reportagem que investe na produção nacional, por meio de parcerias de transferência de tecnologia envolvendo laboratórios públicos e privados, como forma de reduzir a dependência externa. O plano é produzir cerca de 45 milhões de doses anuais, equivalentes à metade da demanda do SUS, em acordo com laboratórios da Índia e da China.
O governo ainda tem discutido a troca no SUS das insulinas humanas por análogas, hoje utilizadas de forma restrita na rede pública.
"As insulinas que o SUS fornece, NPH e regular, são muito antigas, têm várias desvantagens, elas favorecem hipoglicemia, já existem há mais de 20 anos modelos muito melhores", afirma Travassos. Para ela, a troca para o modelo análogo é "fundamental", mas exige treinamento do paciente.
Para liberar a importação de produto sem registro no Brasil, as regras da Anvisa exigem que ele seja certificado por agência do ICH, um conselho que reúne diversos órgãos de regulação do mundo. As agências incluídas, porém, têm uma "variabilidade muito grande de padrões regulatórios", diz o advogado Jaime César Oliveira, ex-diretor da Anvisa.
"A necessidade de optar por essa solução [compra sem registro] acompanha riscos relativos à qualidade desses medicamentos. Quando uma empresa registra um medicamento no Brasil, ela se torna responsável por ele, precisa manter uma estrutura de monitoramento do medicamento. Gera uma série de responsabilidades", afirma Oliveira.
A caneta da GlobalX recebeu o aval da Anvisa para uso, mas por ser um dispositivo classificado como de menor risco, o credenciamento tem rito menos rigoroso do que o aplicado a medicamentos. A insulina da empresa, fabricada por marca da China, não tem a mesma certificação da Anvisa.
Em nota, a empresa afirma que a caneta é utilizada em diversos países e que as falhas atingiram uma pequena parcela do produto, que passa por adequações.
Outra fornecedora de insulina sem registro é a empresa Star Pharma, que utiliza marcas da China, México e Egito e assinou contratos de R$ 143,3 milhões. A licitação vencida pela empresa foi marcada pela atuação da mesma pessoa em duas concorrentes diretas. A entrega ainda tem atrasos. A empresa nega irregularidades e conluio.
Em nota, a Anvisa afirma que as áreas de fiscalização e tecnovigilância do órgão analisam as informações sobre as canetas que tiveram de ser trocadas. A agência diz que a insulina, mesmo sem registro, está sujeita a controles de qualidade de transporte, recebimento e armazenamento, entre outras fiscalizações.
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