O desafio da IA não é tecnológico, é cognitivo
Enquanto o mundo corre para dominar algoritmos, o Brasil tropeça nas palavras

Se existe algo que não aprendemos bem com o passado, é como predizer o futuro. Da máquina a vapor à bolha das empresas.com, todas as inovações disruptivas geraram desconfortos, previsões irrealistas e a ascensão de especialistas em incertezas.
Os livros físicos não acabaram como se preconizava há décadas. Hoje, representam mais de 80% das vendas no mundo, por um simples motivo: a tecnologia não substituiu o livro porque não substituiu o leitor.
A leitura digital cresceu, mas o que se viu foram leitores migrando entre formatos conforme o contexto. E isso muda tudo. Contexto.
A IA é um repositório probabilístico de respostas - e é justamente aí que se esconde a nova desigualdade global. Toda tecnologia amplia capacidades, ao mesmo tempo em que as torna irrelevantes.
O país que aprendeu a pedir música por comando de voz ainda luta para interpretar um parágrafo. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), quase 30% dos brasileiros entre 15 e 64 anos têm dificuldade em compreender textos simples. São pessoas que leem, mas não entendem — e, portanto, não participam da inclusão digital.
Sob a lente de um mercado de trabalho em rápida mutação, o déficit educacional deixa de ser apenas um problema social e se torna uma barreira cognitiva. O problema não é não ter respostas — é não saber formular perguntas.
Estima-se que 31,3 milhões de empregos no país serão afetados, sendo 5,5 milhões em risco alto de automação total. Em tese, esses números indicariam apenas uma transformação inevitável, mas no Brasil revelam algo mais profundo. A IA talvez não destrua empregos, mas desmonte o sentido do que chamamos de trabalho, e ao fazer isso, aprofunde desigualdades.
A nossa revolução digital se dá sobre terreno frágil: temos acesso à tecnologia, mas não à linguagem. E não falo aqui de linguagem de programação.
O debate sobre IA costuma girar em torno da regulação e da ética dos algoritmos. Mas o que está em jogo é a formação de quem os usará. O problema não está na substituição da mão de obra, mas em algo mais sutil: a terceirização do pensamento. Ela reflete o limite de quem pergunta e, ao contrário do que se discute, não substitui apenas tarefas —expõe a incapacidade de reinterpretá-las.
A inaptidão ao raciocínio crítico transforma o improviso em política pública, e o avanço da automação em espelho social.
As economias centrais falam em reskilling e educação contínua (lifelong learning); nós ainda discutimos alfabetização básica. Isso mostra que a reconfiguração do mercado de trabalho não ocorre na esfera digital, mas na cognitiva. A tecnologia amplia o que o nós, humanos, somos - e o que não somos.
E isso talvez explique a nossa lentidão em se inserir na corrida mundial pela IA, fazendo ecoar um ponto doloroso da nossa história.
Lá fora, o Vale do Silício cria, a China escala e a Europa regula; o Brasil - tropeçando em palavras - ainda discute se deve temer ou adotar, revelando que o maior gargalo da inteligência artificial é a inteligência humana.
Ao subir rápido a escada errada, assistimos do topo à revolução da IA; O mundo se pinta em novas cores; nós, ainda debatemos como será feita a escolha do pincel.
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Jaques Paes é executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
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