O mesmo álcool, a mesma cadeia
Entre o etanol que move, o que desinfeta e o que cega, há menos fronteira do que parece. O risco não está na molécula — está no caminho

Nem toda contaminação nasce do improviso. Algumas se originam na própria estrutura que deveria evitá-la. O metanol — álcool industrial usado em combustíveis, solventes e biodiesel — voltou às manchetes. No Brasil, casos confirmados de bebidas adulteradas com metanol já causaram mortes e investigações em várias cidades. O episódio expõe algo maior do que uma falsificação: a fragilidade de uma cadeia de suprimentos na qual fronteiras se misturam.
A Operação Carbono Oculto mostrou que o metanol chega ao país pelos portos de Paranaguá e Santos, armazenado em tanques e terminais que também movimentam outros produtos químicos e combustíveis. O mesmo insumo, importado legalmente, foi desviado para adulteração de combustíveis — e, segundo investigações paralelas, parte dele pode ter abastecido redes clandestinas de bebidas. Não há prova de contaminação acidental em dutos, mas há evidência de algo tão grave quanto: um insumo perigoso circulando por infraestrutura compartilhada, sem rastreabilidade plena.
A lógica é simples — e preocupante. Quando um produto altamente tóxico transita pelos mesmos corredores logísticos que insumos alimentícios ou combustíveis de uso civil, qualquer falha de segregação, documentação ou controle de destinação vira um ponto cego. E é nesses pontos cegos que o mercado paralelo prospera.
O padrão é global. Em Irkutsk, na Rússia, o metanol saiu de uma fábrica de fluido automotivo e virou “álcool de banho”, vendido como vodka — o desvio abriu caminho para uma tragédia de dezenas de mortes e transformou uma falha logística em alerta sanitário (Guardian). Em Pärnu, na Estônia, 68 pessoas morreram após o furto de tambores industriais de metanol usados para fabricar destilados falsos (PubMed). Casos semelhantes surgiram em Índia, Malásia, Costa Rica e Laos, seguindo roteiros parecidos: insumo industrial, armazenamento precário e distribuição irregular. No Irã, em 2020, a quebra dos controles logísticos e a desinformação sobre o consumo de álcool levaram ao maior surto de intoxicação por metanol já registrado, com milhares de hospitalizações e centenas de mortes ( PMC , PMC).
Não foi um erro de laboratório, mas de logística. E mostra que, quando as cadeias se cruzam, o risco não é mais o produto, é o sistema. O que liga todos os casos não é a molécula, tampouco uma adulteração deliberada, pode ser a cadeia de suprimentos.
Nem sempre o problema é clandestino. A FDA, agência sanitária dos Estados Unidos, precisou intervir em 2020, durante a pandemia, após identificar álcool em gel contaminado com metanol vendido como etanol. Produtos industrializados, com rótulo, selo e até registro, estavam contaminados. A falha não era de formulação, mas de rastreabilidade: o metanol entrou na linha de produção e ninguém percebeu. O episódio levou à proibição de dezenas de marcas e mostrou que até cadeias formais podem falhar quando o controle de insumos é opaco (FDA).

No Brasil, o assunto vai além das bebidas falsificadas. O etanol, o metanol e outros derivados dividem portos, tanques e dutos. A ANP reconhece essa vulnerabilidade ao estabelecer um limite de metanol residual no etanol combustível, justamente porque a contaminação operacional é possível. A própria agência ofereceu seu aparato técnico à Anvisa para fiscalizar bebidas suspeitas — um gesto raro que confirma o óbvio: não se trata de um problema de saúde isolado, mas de governança de cadeia.
Ao estabelecer uma regra para o teor residual de metanol no etanol combustível, fixando um limite máximo para fins de certificação, a ANP evidencia que existe a possibilidade de contaminação não intencional. Esse reconhecimento pode ser entendido como uma vulnerabilidade da cadeia de suprimentos — seja nos processos industriais, na armazenagem ou no transporte.
Nas palavras da própria ANP:
“O teor de metanol é uma das características a serem avaliadas quando da certificação do etanol combustível, de acordo com a Resolução ANP n° 907/2022. O limite máximo permitido para o parâmetro é de 0,5% em volume, a título de contaminação não intencional. A regra faculta ao fornecedor de etanol combustível a realização da análise para determinação da presença de metanol, situação na qual deve declarar, no certificado da qualidade, que o produto que está sendo certificado contém teor de metanol abaixo do limite permitido, de 0,5% em volume, e que assume toda e qualquer responsabilidade pelo não atendimento à especificação. Tal obrigatoriedade foi estabelecida com o intuito de se coibir o uso do metanol como adulterador do etanol.” (Fonte: https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/producao-e-fornecimento-de-biocombustiveis/etanol)
A partir desse dispositivo, pode-se interpretar que, ao transferir ao fornecedor a responsabilidade por atestar a conformidade, a ANP não elimina o risco, mas o desloca para a esfera operacional e jurídica das empresas.
Penso que esse dispositivo regula um risco reconhecido: ao prever residual “não intencional”, a norma admite a possibilidade de contaminação operacional e, ao exigir declaração do fornecedor, transfere a responsabilidade de controle para as empresas — sem eliminar o risco sistêmico de cadeia. Entre controles que falharam e verdades mal comunicadas, o metanol encontrou mais espaço do que deveria.
Em termos de gestão de riscos, trata-se de uma forma de transferência regulatória do risco identificado.
Quando a mesma infraestrutura movimenta biocombustíveis, químicos e insumos potencialmente letais, o risco deixa de ser químico e passa a ser sistêmico. Portos, terminais e distribuidoras são elos críticos que conectam mercados formais e informais. Onde há sobreposição de rotas, há espaço para o desvio.
Não é o primeiro alerta. Talvez seja o mais pedagógico. A fronteira entre o álcool que abastece, o que desinfeta e o que mata é cada vez mais tênue — O problema nunca foi o álcool — foi a gestão.
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Executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
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