A culpa eu coloco em quem eu quiser! (menos no estagiário)
Da oficina ao Zoom, como a colaboração transformou a hierarquia e diluiu a responsabilidade

Início da década de 90 eu estudava no Senai pela manhã, e pela tarde trabalhava de eletricista de manutenção em uma empresa como cotista. Naquela época não era trabalho infantil.
Entrei fascinado no Senai; era minha chance de mudar de vida. No primeiro dia, me pediram para buscar uma caixa de elétrons - e eu fui. Começava ali minha jornada. Mais tarde, já “veterano”, foi minha vez: pedi ao novato “um martelo de vidro para separar elétrons”. Ele voltou com um pedaço de tronco de árvore em um carrinho de mão, dizendo que lhe informaram que não tinha mais o “de vidro”; então trouxe o “para vidro” Eu ri. Ele riu. Todos riram.
Aquelas brincadeiras de oficina eram um rito de passagem. Ingenuidade e responsabilidade se misturavam, mas cada um sabia o seu papel e respondia por ele.
Durante muito tempo, responsabilidade era uma categoria quase artesanal: tinha nome, a decisão tinha assinatura, a hierarquia dava rosto ao comando. Havia dureza, mas também clareza.
O que parecia opressivo nos anos 90 foi gradualmente sendo deslocado. Primeiro, criticou-se a rigidez. Depois, ensaiou-se a colaboração. Em pouco tempo, metodologias e modismos converteram “hierarquia” em palavra tóxica. Aquilo que parecia impraticável — abolir chefes, dissolver fronteiras, tomar decisões em assembleias improvisadas — foi se tornando aceitável, até virar mainstream. É a janela de Overton em movimento: ideias que ontem eram impensáveis hoje são vendidas como inevitáveis.
Ganhos? Evidentes. Mais vozes à mesa, maior diversidade de perspectivas, a promessa de inovação distribuída. Esses avanços são reais, mas não blindam o risco: a colaboração, quando mal administrada, transforma-se em território onde todo mundo opina e ninguém responde.
Mas há também um deslocamento sutil: a responsabilidade saiu do campo visível. Quando todos decidem, quem responde? Quando todos são donos, quem assume?
É um movimento em que o indivíduo se dissolve no coletivo, abandona o senso crítico e passa a reagir como parte de um organismo maior. Não se trata apenas de compartilhar decisões, mas de substituir a reflexão pela emoção coletiva: a isso se dá o nome de psicologia das multidões.
A reunião com cem pessoas no Zoom, o feed corporativo, o mural de indicadores — são multidões modernas. E nelas a responsabilidade se dilui, não porque desapareceu, mas porque se camuflou na massa.
O perigo não está em colaborar, mas em acreditar que colaboração substitui accountability. A janela de Overton deslocou a hierarquia do lugar de opressão para o de tabu. Mas talvez seja hora de resgatar sua função mais nobre: dar rosto às decisões. A questão não é restaurar a rigidez do passado, mas reconhecer que a clareza da hierarquia tinha uma utilidade que ainda não aprendemos a substituir. Nenhuma multidão responde por si mesma.
E o estagiário? Bem, como outros exemplos, ele é apenas um recurso de linguagem. Certas expressões sobrevivem ao tempo sem maior gravidade. O problema não está nelas, mas em como transformamos metáforas em dilemas morais - enquanto isso as responsabilidades ficam cada vez mais difusas. Afinal, é menos sobre as multidões e mais sobre nós. O estagiário nunca foi o ponto, mas sim a forma como confundimos metáfora com desculpa.
Se a janela de Overton continuar deslizando, a ausência de responsabilidade deixará de ser efeito colateral para se tornar virtude. O erro coletivo será vendido como maturidade, a responsabilidade difusa como sofisticação, e a falta de dono como sinal de cultura mais evoluída.
De brincadeiras de oficina à psicologia das multidões, o que ontem parecia impensável hoje pode ser tratado como problema — ou vendido como evolução. Entre metáfora e responsabilidade, a linha é mais fina do que parece.
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Jaques Paes é executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV.MATÉRIAS RELACIONADAS:



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