BC está disposto a sentar com governo para debater autonomia ampla, diz Campos Neto
Presidente do Banco Central defende um acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aprovar a PEC que ampliar autonomia da instituição
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O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende em entrevista à Folha a costura de um acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para a aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) que amplia a autonomia da instituição.
"A autonomia financeira é um passo no sentido de aprimorar o arcabouço de autonomia do BC", afirma.
O chefe da autoridade monetária começou a articular o tema no Congresso, o que causou reação entre os membros da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao ponto de o diálogo com Haddad ter sido interrompido.
Campos Neto e Haddad voltaram a se falar na sexta-feira (1º), justamente sobre a PEC. "Eu tentei dar conforto para ele, que o BC tem flexibilidade, que a gente pode discutir, que nada vai ser feito à revelia", diz Campos Neto.
O BC ganhou autonomia operacional há cerca de três anos, durante o governo Jair Bolsonaro (PL). Pela PEC, o BC passa a ser uma instituição de natureza especial com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira, organizada sob a forma de empresa pública e com poder de polícia.
O presidente do BC recebeu a Folha, no escritório da instituição em São Paulo, após a reunião com o ministro da Fazenda. Campos Neto fala ainda sobre os desafios da política monetária e diz estar otimista com o crescimento.
Folha - O sr. disse recentemente que o BC está derretendo. O que quis dizer com isso?*
Roberto Campos Neto - Derretendo foi uma expressão usada em relação aos quadros do banco. Ao mesmo tempo que tem gente saindo para ir para o mundo privado, teve o movimento tenso, perto da greve [dos servidores], de devolução de [cargos] de comissão. Gente pedindo para ser descomissionado e também para sair.
Esse é um problema do funcionalismo que vem de muito tempo. Outros órgãos públicos estão passando pela mesma situação.
No caso do BC, chegou a um nível de tensionamento de tal forma que começou a atrapalhar muito o funcionamento interno do banco.
Qual o risco para o funcionamento do banco?
Estamos perto agora de ter um acordo. Mas essa é uma solução de curto prazo. Precisamos pensar olhando para frente: como vamos manter os quadros de excelência e as pessoas motivadas?
Temos muitos projetos para fazer. Precisamos avançar com o Drex [moeda virtual], o open finance, o projeto para poder usar a inteligência artificial de uma forma melhor.
O sr. e a diretoria apoiaram a PEC do Senado de autonomia fiscal e orçamentária do BC? Qual a vantagem de ampliar a autonomia?
Hoje, mais de 90% dos bancos centrais do mundo que têm autonomia operacional também contam com autonomia financeira. A autonomia financeira é um passo no sentido de aprimorar o arcabouço de autonomia do BC.
A PEC foi um trabalho que o BC apoiou. Vários diretores participaram do projeto. Tanto o BC como o Senado estão muito abertos para discutir com o governo.
A gente precisa entender se tem alguma coisa que incomoda [o governo] no âmbito da governança. Temos muito espaço de manobra para acertar isso. A PEC é um início de debate, um esqueleto, que pode ser aprimorada, mudada.
Todos os diretores estão apoiando a PEC, inclusive os indicados por Lula?
Estão. Todos os projetos que a gente faz passam em reunião de diretoria colegiada. Tudo foi feito em consenso.
O governo tem se mostrado contrário à PEC. Como avalia esse posicionamento?
O primeiro desenho da PEC foi uma coisa pensada no BC. O Banco Central, o Senado, e o próprio senador [relator] Plínio Valério (PSDB-AM) estão dispostos a sentar com o governo.
A nossa ideia é ter um texto que o governo apoie, que o Senado entenda que é um texto bom, e que seja bom para o Banco Central.
O sr. e Haddad tiveram uma reunião depois de um período em que não se falaram. Como foi o encontro?
Foi uma conversa muito boa. Expliquei para ele o que estava acontecendo no BC, no detalhe, e qual era a minha preocupação.
Eu tentei dar conforto para ele, que o BC tem flexibilidade, que a gente pode discutir, que nada vai ser feito à revelia. E que é importante o governo estar de acordo com a nossa proposta, que é um avanço institucional para o Brasil. Coloca o BC e o país em um nível superior.
No relatório do FMI, uma das recomendações é avançar na autonomia financeira.
O que o ministro Haddad disse para o sr.? Ele vai mudar de ideia?
Primeiro, ele nunca disse que era contra a PEC. Não lembro de ter visto isso.
Saiu o resultado do PIB brasileiro de 2023, com alta de 2,9%. O sr. tem dito que o PIB de 2024 pode surpreender. Por outro lado, o IBGE mostrou uma estagnação no segundo semestre do ano passado. Qual o cenário que o BC trabalha e o impacto na política de juros?
Temos que olhar a tendência. A evidência que a gente tem até agora é que o primeiro trimestre deve ter um PIB maior, inclusive as casas [do mercado] têm revisado o crescimento de 2024 para cima.
O PIB que saiu, na verdade, é como se estivéssemos olhando o retrovisor. Mas o importante é olhar o que vai acontecer em 2024. O que temos visto são revisões para cima do PIB. Lembrando que temos tido revisões para cima de 2024 já há algum tempo. Começou muito baixo, perto de meio por cento, e já está mais para 1,2%, 1,5%. E tem casa com 2%.
O BC projeta uma alta de 1,7%. Vai mudar?
Vamos olhar os números. Nossa missão é trazer a inflação para a meta com o mínimo possível de prejuízo para a economia. O caminho é bom.
Um PIB mais acelerado pode ter impacto na inflação. Isso preocupa?
É óbvio que, se tem um crescimento muito grande, e começa a gerar um processo inflacionário, é uma preocupação. Mas o que observamos no ano de 2023? Diversas revisões de inflação para baixo e diversas revisões de PIB para cima.
O que a gente está vendo agora? Temos uma preocupação com a inflação de serviços e com o efeito de salários. Estamos vendo os salários subirem um pouquinho mais, e como é que isso impacta a inflação de serviços? A gente tenta fazer uma diagramação olhando todos os setores.
Ao que tudo indica, o Fed [o Banco Central americano] vai demorar mais do que o originalmente esperado para começar a reduzir o juro. Até que ponto isso influenciou o comportamento do BC?
Teve um momento em que o mercado chegou a precificar uma probabilidade perto de 80% de o Fed começar os cortes em março.
Se tem dados fortes na economia, e a inflação está num processo de convergência, mas há dúvida em relação a essa última milha, você ganha graus de liberdade para esperar um pouco para ver se de fato a inflação está convergindo.
Os dados mostram que o Fed ganhou um pouco mais de tempo. O mercado passou a precificar, passou a entender que o corte não ia mais ser em março, e agora [está] entre maio e junho.
O BC tem afirmado que manterá a chamada Selic terminal [fim do ciclo de queda] em território restritivo. Ou seja, o juro real acima do neutro [aquele que não acelera nem desacelera a inflação]. Qual a motivação para isso?
Com os dados que tínhamos na última reunião do Copom, o que entendemos que era o correto em termos de política monetária era dar um guidance. Ou seja, uma previsão de que a gente iria cortar nas próximas duas reuniões, a menos que alguma coisa muito diferente acontecesse, que iríamos seguir o ritmo de corte de 50 basis [0,50%].
A expectativa de inflação está um pouco acima da meta, quando a gente olha os componentes de inflação, não tem certeza do processo de inflação amplo. Por várias razões entendemos que as taxas de juros precisam estar no campo restritivo. Isso é uma coisa que avaliaremos a cada momento no Copom.
O BC tem mostrado preocupação com o mercado de trabalho. Quão perto essa preocupação está para se tornar um empecilho para a queda de juros?
O mercado de trabalho está mais apertado em vários países do mundo. Existem vários economistas tentando entender estruturalmente porque isso está acontecendo.
No pós-pandemia, o mercado de trabalho recuperou muito mais rápido do que se imaginava e está apertado em grande parte do mundo, nos Estados Unidos, no Brasil. Apertado significa que o desemprego está mais baixo do que o que se esperava.
Isso pode ter efeito inflacionário?
Sim. Mas isso não está só acontecendo no Brasil, está acontecendo nos EUA, no Canadá, na Austrália, na Inglaterra, na Europa, em grandes partes dos países.
O diagnóstico do BC hoje é que você precisa de mais tempo para verificar se existe de fato uma contaminação no preço de serviços vindo de salários, mas ainda não vimos esse aumento de salários reais se transformar numa trajetória ruim para a inflação de serviços.
Há risco de não termos uma taxa Selic terminal de um dígito?
Não conseguimos dizer qual é a taxa terminal hoje, porque o processo de desinflação ainda está em curso. Se a taxa vai terminar em um dígito ou não depende de muita coisa, inclusive da parte externa.
O sr. vê risco de uma desaceleração do PIB forçar o governo a querer acelerar estímulos para o crescimento? Isso afetaria a inflação?
O BC não faz comentários sobre qual é o programa do governo. O fiscal é uma variável que está ligada intrinsecamente à política monetária.
Outro dia mesmo o ministro Haddad falou que a gente precisa fazer um fiscal [reduzir o déficit] porque isso contribui com juros mais baixos. Acho que todos nós estamos na mesma missão.
O sr. então está mais otimista com a política fiscal.
O governo tem todas as condições de fazer um número fiscal melhor do que o que está nos preços, um déficit menor. Neste caso, estou otimista.
O mercado tem um número de déficit projetado hoje de 0,7% e 0,8% do PIB, e acho que o governo tem condições de entregar um número melhor do que esse. Estou otimista em relação ao que o mercado está achando.
O sr. já disse que o rotativo do cartão de crédito foi o tema mais difícil que enfrentou. Como o BC vai encaminhar esse tema após o limite dos juros?
O rotativo é um problema que já vem de há algum tempo. Mais recentemente teve três componentes que fizeram com que o problema se agravasse.
Um foi que o limite de gastos nos cartões aumentou bastante. O outro é que o número de cartões aumentou muito. Acabou tendo o que chamamos de mar aberto, que é muito cliente que teve cartão e que não pertence a um dos grandes bancos. Tem também o parcelado sem juros, que é um tema que gera um financiamento no cartão sem juros.
Foi decidida uma solução que foi regulamentada pelo BC no CMN [Conselho Monetário Nacional], chamada de muro inglês. Para fazer uma queda muito expressiva, precisamos de novo voltar à mesa, discutir o problema com os setores todos, para entender como é que podemos fazer uma solução na qual de fato a gente tenha uma queda de juros mais expressiva e estrutural.
Há um ano, o sr. vivia o auge de uma relação conturbada com o presidente Lula por causa dos juros altos. Qual o balanço dessa relação?
Foi uma experiência nova para todo mundo. Para um governo que já tinha sido governo e que estava acostumado a ter o poder da nomeação do BC. Para mim também, que de repente estava trabalhando para um governo que não foi o que me indicou. Esse é o espírito da autonomia.
O que está por trás do pouso suave para inflação que o sr. cita em discursos?
É conseguir levar a inflação para a meta com o mínimo de sacrifício econômico necessário. De PIB, emprego, de tudo. Quando eu falo de sacrifício econômico, é a experiência na vida das pessoas. Menos custo para a sociedade. É crescimento, mais emprego.
Acha que o PT vai continuar pressionando o sr.?
Tenho que trocar meu trabalho aqui no dia a dia. Eu tenho uma relação boa com o ministro Haddad, já conversei com Lula algumas vezes. Estou tentando fazer o melhor para o país. Fazer o melhor para o país ajuda o governo. A minha opinião pessoal é que o foco vai ser a eleição municipal. A volatilidade dos juros está baixa.
O BC está indicando o que vai fazer nos próximos dois meses. O BC virou um negócio desinteressante.
Como o sr. vê a sua sucessão?
Só tenho uma coisa para dizer sobre isso. Vou fazer uma transição suave e ajudar o meu sucessor.
Raio-X
Roberto Campos Neto, 54
Presidente do Banco Central desde fevereiro de 2019, sendo o primeiro a comandar a autarquia sob o modelo autônomo. Tem mandato até 31 de dezembro de 2024. É bacharel e mestre em economia pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), e tem no currículo passagens por Santander, B3 e Bozano
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