O papel do humorista
Reflexão sobre os limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio no humor
No primeiro semestre deste ano, um comediante brasileiro foi condenado à prisão por ter publicado um vídeo na plataforma YouTube, incitando a discriminação contra pessoas idosas, gordas, evangélicos, homossexuais, negros, etc.
Ressalta-se, desde já, que os crimes estão previstos na legislação que, inclusive, faz referência a certas agravantes da pena, como a prática do delito através de publicação na rede mundial de computadores e no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público.
É importante salientar, ainda, que a defesa do artista negou apenas ter havido vontade de discriminar. Mas saliente-se que o conceito adequado de dolo não tem a ver com a vontade de realizar certo fim, mas com a previsibilidade das consequências da conduta, pois, de outro modo, não se poderia afirmar ter havido dolo no homicídio do co-piloto, quando o assassino coloca explosivos na aeronave com a intenção de matar apenas o piloto, estando ambos no mesmo ambiente.
Dito isso, transcreve-se uma pequena fração do conteúdo do vídeo: “Eu tô fazendo várias piadas de velho agora e vocês tão rindo tranquilamente, sem pensar se é certo ou errado, sem medo de julgamento. Por quê? Porque hoje ninguém defende o velho. Já ouviu falar na militância da velhofobia? Se o velho falar: “Ai, eu não gostei dessa piada”. Ah, é mesmo? F*da-se!! Cê já tá quase morrendo, reclama direto com Deus! Ninguém defende o velho. A não ser que seja um velho gordo! Ou velho gordo e gay. Ihhh.... O velho gordo, gay e negro! Iiiiihhhh.... Se for cadeirante também...”
O humorista envolvido disse que a arte deve desenvolver-se de modo livre. Outros comediantes saíram em sua defesa. Um deles afirmou que não é porque nem todo mundo gosta de pimenta, que o tempero deve ser proibido. Outro disse que não se pode exigir que o ator em um filme pornô não se mostre excitado. Mais interessante foi um que afirmou, com ironia, existirem tantos crimes sérios sem punição e a Justiça brasileira resolveu condenar logo um contador de piadas. Sim, o humorista pode fazer crítica política ou dar esse tipo de nó na cabeça do auditório. Embora seja uma falácia dizer que a Justiça ao punir um crime “menor” alimenta a impunidade.
Essa coisa de ir às últimas consequências é algo arriscado, porque, conceitualmente, elas estão longe das premissas iniciais. Tal postura mostra-se ainda mais grave, se às tais premissas originais se acrescentam outras culturalmente ultrapassadas.
Por outro lado, o humorista não é inteiramente livre no seu atuar, como não são o cientista, o professor ou o jogador de futebol. Será correto pretender a criação de uma “zona de imunidade” ou uma área de autorregulação, mesmo nas hipóteses em que os vídeos são postados na internet, sabidamente um lugar avesso ao senso crítico?
De todo modo, não há como delimitar o papel do humorista. Em termos gerais, pode-se afirmar que lhe cabe invocar a curiosidade ou inteligência das pessoas e, não, alimentar a ignorância e o preconceito.
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