A insustentável ligeireza do nosso jeito de ser
Traição na literatura e na história mostra verdades mutáveis e consequências diversas
A traição é um acontecimento tão comum na sociedade que, para o ferino Nelson Rodrigues, “só o inimigo não trai”. No entanto, as consequências para os traidores têm variado ao longo da história e da geografia, produzindo às vezes páginas da mais alta literatura, às vezes da mais sórdida política.
Na literatura mundial, pródiga em obras sobre o tema, os enredos costumam distinguir quem é do bem e do mal, e punir estes últimos. Enganado por Iago, Otelo assassina Desdêmona e, ao ver que ela era inocente, comete suicídio. Ana Karenina ousa separar-se do marido quando se apaixona pelo conde Vronsky, mas é segregada pela sociedade e acaba se jogando debaixo de uma locomotiva em movimento. Madame Bovary trai seu pacato marido com dois amantes e afinal, endividada e infeliz, se mata com arsênico. Luísa trai o marido com o primo Basílio e, flagrada e chantageada pela criada Juliana, adoece e morre.
No Brasil, Machado de Assis nos põe diante de situações mais sutis. Nas suas memórias póstumas, Brás Cubas tem longo caso com Virgília, esposa de Lobo Neves, mas só o êxito político do marido vai garantir, no final, a fidelidade da esposa. Em Dom Casmurro, Bentinho morre de ciúmes de Capitu, que pode tê-lo traído com o amigo Escobar, ou pode ser que não, o leitor decide.
Machado parece sugerir que nossa verdade é elástica, menos afeita a punições e mais à vontade com o perdão dos culpados. As percepções se renovam na medida em que sujeitos, antes ocultos por debates obscuros, vêm à tona e permitem outro entendimento sobre tempo e espaço.
Os livros de escola da minha geração condenavam dois traidores famosos. O primeiro era Domingos Fernandes Calabar, que primeiro lutou ao lado da resistência luso-brasileira e depois aliou-se às tropas holandesas. Em obra publicada em 1854, Varnhagen qualificou Calabar de traidor da pátria. Dada a ascendência intelectual do historiador, sua interpretação tornou-se a verdade historiográfica incontestável, até que historiadores como Evaldo Cabral de Mello propuseram uma visão mais matizada das lutas nas “guerras pernambucanas do açúcar”. Ao defender seus interesses de rico agricultor, Calabar teria traído Portugal, não a recém-pátria Brasil.
Por sua vez, Joaquim Silvério dos Rei foi conhecido durante muito tempo como o delator responsável pela prisão dos inconfidentes mineiros. Com pesquisas mais aprofundadas, historiadores verificaram que ele teria sido apenas mais um português que se estabeleceu em Sabará e ganhou bom dinheiro cobrando para a Junta da Real Fazenda impostos sobre a entrada de mercadorias em Minas Gerais. Quando o Visconde de Barbacena assumiu o governo da província, zerou as contas e executou a derrama, Calabar, por oportunismo, juntou-se aos inconfidentes. Quando as circunstâncias mudaram, ele que, afinal, era português e nunca deixou de ser oportunista, virou casaca de novo e denunciou os inconfidentes.
Para prevenir-se contra as oscilações tão recorrentes na nossa história política, munimos o arcabouço jurídico de dois instrumentos principais para tratar de crimes contra a segurança nacional. A lei 14.197, de 2021, promulgada pelo então presidente Bolsonaro, definiu os crimes contra o Estado de Direito, nos termos que ficaram popularmente conhecidos durante o recente julgamento dos responsáveis pela tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Traição à pátria, por seu turno, é matéria específica do Código Penal Militar, que prevê crimes de traição, espionagem e sabotagem. A traição se configura quando o criminoso, entre outros delitos, atenta contra a soberania nacional, em benefício de país estrangeiro. Uma dúvida ainda ausente do debate em curso é se um deputado federal que se muda para um país estrangeiro e lá milita para que punições econômicas sejam impostas a empresas e cidadãos brasileiros está atentando contra a soberania nacional. Caberia deliberar a respeito, mas até o momento debate-se apenas se ele pode manter o salário e demais prerrogativas parlamentares. Lá de cima, Machado, irônico, sorri.
MATÉRIAS RELACIONADAS:



