O sofrimento da alma e o espírito do tempo
Saúde mental se torna o maior desafio da vida moderna e coletiva
A contemporaneidade agenda uma nova “dor de cabeça” quando o assunto é saúde e bem-estar. Antes, as aflições se pautavam por preocupações com o corpo de carne e osso.
Hoje, são as afecções da “alma” a pautar prioritariamente o pensar sobre como viver de modo saudável. Estamos em plena epidemia de sofrimento psíquico. Recentemente, a Ipsos lançou relatório global sobre o tema.
“Os brasileiros indicaram a saúde mental como principal problema de saúde enfrentado no País.” Os índices são crescentes. Em 2018, apenas 18% citaram a saúde mental como a mais relevante questão sanitária.
Em 2024, chegamos a 54%. “Cerca de 77% da população já refletiu sobre a importância de cuidar da saúde mental.” Viver nunca foi fácil, mas a atualidade tem adicionado ingredientes amargos à receita do existir.
A pandemia da covid-19 deixou um travo de difícil digestão, fazendo desandar a alquimia dos dias, já turvada por um combo de incertezas venenosas formado por crise climática, extremismos políticos, cultura de ódio...
Ansiedade, pânico, melancolia e depressão, entre burnouts e bipolaridades, adoecem a alma do hoje, submetida à demanda de performar em dupla ambiência – a presencial e a digital –, numa temporalidade instantaneísta, que reduz o agora a quase nada, o passado a um monte de entulho indevassável e o futuro a uma entidade fantasmagórica a angustiar um atual raquítico.
Freud aponta as condições estruturais do mal-estar humano: “o próprio corpo, fadado ao declínio e à dissolução; o mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, as relações com os outros seres humanos”, tão ou mais agressivos que nós. Ou seja, atualmente, experimentamos uma maximização de todas as condicionantes.
O pai da psicanálise lista “saídas” comumente usadas para enfrentarmos as dores do existir, como os métodos químico-intoxicantes, a fruição das artes e a experimentação do “delírio na realidade” – as religiões.
Mas, segundo ele, “não existe uma regra de ouro que se aplique a todos” e cada um “tem de descobrir por si mesmo de que modo pode ser salvo”, no contexto de impossibilidade de felicidade plena e/ou duradoura.
Combate incansável às idealizações, implicação na constituição dos próprios sintomas... Esses são alguns nortes psicanalíticos diante do sofrimento, entendendo-se cada sujeito como responsável por sua caminhada.
Por mais que não governemos a “casa que habitamos”, subjugados que somos pelo inconsciente, sempre se pode, pelo acesso a vestígios dessa “outra cena”, numa análise, conquistar uma autonomia relevante.
No campo das sociabilidades, Freud prescreve uma “comunidade humana” na qual “trabalha-se com todos para o bem de todos”, a despeito de algum mal-estar oriundo das contenções civilizatórias que a convivência requer.
Ou seja, saúde mental é questão tão subjetiva quanto intersubjetiva. Num tempo de sofrimento farto e multifatorial, bom trabalho – a cada um de nós, a todos nós!
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