Capixabas à espera de ajuda para escapar de enchentes no Rio Grande do Sul
Muitos viajaram a passeio ou a trabalho e agora buscam auxílio no Rio Grande do Sul para conseguir voltar ao Espírito Santo
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Nos últimos dias, os olhares estão voltados para o Rio Grande do Sul. No rastro de destruição, mais de 100 pessoas perderam a vida, número que pode aumentar, já que até ontem ainda havia 136 desaparecidas.
Não foram só os gaúchos que foram surpreendidos pela tragédia. No meio dessa catástrofe, há capixabas e moradores do Estado à espera de ajuda para escapar da enchente.
Muitos viajaram a passeio ou a trabalho e agora convivem com uma verdadeira peregrinação para retornar ao Espírito Santo. Outros moram lá, e estão atuando como voluntários, entre os quais médicos e outros profissionais.
Há oito dias, o empresário Pablo de San Félix, de 45 anos, tenta escapar do caos e da tragédia e voltar para casa, em Vitória. Em uma viagem a trabalho desde o dia 29 de abril, ele contou todo o drama para atravessar o estado, em meio a uma enchente sem precedentes.
Pelo caminho, chegou a dormir por três dias seguidos dentro do carro, ficou sem gasolina, pegou atalhos, voltou aos trajetos, mas nada, segundo ele, se compara à dor e ao sofrimento que tem testemunhado pelas cidades em que passa.
“Não me sinto em condições de reclamar, pois estou bem. Vi pessoas que perderam parentes, amigos, perderam tudo o que tinham”.
Na tarde de ontem, após pegar alguns ônibus de cidade em cidade, ele finalmente conseguiu atravessar a divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina.
Para hoje, ele espera conseguir finalmente pegar um voo para chegar em casa e rever sua família.
Morando em Porto Alegre há um ano e meio, a capixaba Michele Riva, que é diretora escolar, está no meio do que descreve como um cenário de guerra. “Eu vi cerca de 20 capixabas querendo voltar para o Espírito Santo, sem conseguir. Muitos estavam em Gramado a passeio. Alguns estão em abrigos enquanto aguardam o aeroporto de Porto Alegre ser reaberto”.
Na corrida contra o tempo, Michele tem dedicado a sua vida a ajudar o próximo. “Estou sendo voluntária. Abrimos um abrigo no ginásio do colégio, onde sou diretora. Lá tem 160 desabrigados. Tenho dormido cerca de três horas por dia. Estou exausta, mas não podemos parar”.
A sua casa não foi inundada, mas já enfrenta falta de água e quase não tem alimentos nos supermercados.
Mesmo de longe, ela não esconde o carinho pelo Espírito Santo e agradece a solidariedade, as orações e as doações dos capixabas. “Estamos aqui de corações gratos, mesmo em tempos difíceis acreditamos no amor. Muito obrigada!”, disse Michele.
A Tribuna- Quando chegou ao Rio Grande do Sul?
Pablo de Santa Félix- Saí de Vitória de avião no dia 29, com destino a Porto Alegre. Eu tinha uma reunião de negócios no dia seguinte na cidade de Quaraí, extremo sul do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Passei o feriado de 1º de maio lá também e fiz uma outra reunião no dia 2, de manhã. Aí comecei a voltar para Porto Alegre, para pegar o vôo de volta, que seria no dia 4.
Já sabia como estava a situação naquele momento?
Eu tinha começado a ouvir sobre as chuvas, mas, mesmo nos principais meios de comunicação, não se falava de algo como acabou acontecendo. No dia 2 mesmo, eu já não consegui chegar em Porto Alegre porque já teve estrada bloqueada na região de São Gabriel, que é mais ou menos na metade do caminho para Porto Alegre, perto de Pelotas. Então dormi por lá.
Depois conseguiu seguir viagem?
No dia seguinte, continuei, mas já tinha piorado muito. Tentei chegar o mais próximo possível, antes que inundasse, mas foi tudo muito rápido. Quando cheguei em Eldorado do Sul, que foi uma das cidades mais destruídas, já estava bloqueado. A polícia dizia que a situação era caótica, então em voltei para uma cidade antes, que era Guaíba.
A cidade também foi atingida?
Sim, parte de Guaíba. Comecei a ver chegarem muitos desabrigados, principalmente de Eldorado do Sul, porque a cidade ficou sem nenhum ponto de apoio. Absolutamente a cidade inteira ficou debaixo d'água, todos os 38 mil moradores.
Você estava em hotel?
Não tinha nenhum hotel com vagas em Guaíba, todos já ocupados por pessoas que perderam suas casas. Eu achei um lugar alto, que tinha um restaurante às margens da BR-116, e parei meu carro. O sinal do celular começou a ficar ruim, então consegui usar o Wi-Fi do restaurante para conseguir me comunicar. Dei dezenas de telefonemas para as cidades em volta para tentar achar um hotel, mas sem a mínima expectativa de conseguir uma vaga. Como escureceu, eu dormi dentro do carro.
Tinha comida para todos os dias?
No primeiro dia tinha comida à vontade no restaurante. Mas depois, no segundo dia, as comidas começaram a ficar mais simples, sem carne, verduras. Passei três dias dormindo no carro, comendo o que dava, e na expectativa de achar um lugar. No terceiro dia preso aí em Guaíba, o restaurante começou a não ter água, mas ainda tinha sucos e refrigerante.
Quando saiu de lá?
No domingo, um hotel que eu tinha ligado, me ofereceu uma vaga que tinha surgido. Depois de três dias dentro do carro e sem tomar banho, eu consegui dormir em um quarto em Guaíba. Acho que foi a melhor noite da minha vida. No dia seguinte, comecei a conversar com as pessoas que estavam presas na região para tentar sair. Nessa altura já se sabia o tamanho da tragédia, como as coisas estavam complicadas em Porto Alegre também e que o aeroporto estava destruído, então não tinha mais como ir para lá. Os caminhoneiros que conheciam a região, me sugeriram fazer um caminho para fugir do Rio Grande do Sul, sugerindo um caminho por uma cidade chamada Triunfo, que daria para chegar mais para o norte do Estado. Dirigi 150 quilômetros, porém, uma cidade antes de Triunfo, que se chama São Jerônimo, também estava tudo alagado, e eu fiquei preso nesse ponto.
Tinha combustível?
Foi nesse meio tempo eu descobri que não tinha mais gasolina em lugar nenhum. Eu ainda tinha um pouco no carro. Fui para outras cidades que iam me indicando, sempre calculando se meu combustível daria. Também tinha que fazer mudanças de caminho, porque às vezes a água baixava em uma cidade e subia em outra, então ninguém sabia ao certo qual caminho funcionaria para escapar do Rio Grande do Sul.
E como conseguiu?
Depois de um tempo, eu consegui chegar em Santa Cruz, que já é uma cidade maior, com mais estrutura, mas ainda sem combustível. Fiquei sabendo que daria para chegar em Lajeado, que é uma cidade que inclusive foi destruída também pela enchente, mas que a água já tinha baixado totalmente. Cheguei com o meu carro lá na reserva e devolvi para a locadora de veículos. Nem eles mesmos tinham mais como alugar carros, pois não tinham combustível. Dormi em Lajeado e comecei a outra saga, que era de conseguir ônibus. As empresas não estão fazendo trajetos longos, com medo de não ter como levar as pessoas, já que caminhos ainda são incertos. Então as viagens são de, no máximo 50 quilômetros.
Mas tem conseguido sair de ônibus?
Fui pegando alguns ônibus, até Caxias do Sul, e agora (ontem) outro que me levará até Florianópolis. Já comprei uma passagem para amanhã (hoje) para Vitória.
E sua família ficou preocupada?
Muito. Por mais que eu dissesse que eu estava em um lugar seguro, que eu não corria nenhum risco de morte e que eu tinha alguma comida, eles viam as notícias da televisão, da internet e ficavam me ligando querendo saber se eu realmente estava bem.
O que foi mais difícil para você nesse período todo?
Eu nem considerava meu sofrimento, porque era tanta desgraça em volta que eu não me sentia no direito de reclamar de nada. Eu vi muita gente chorando, principalmente no restaurante que eu fiquei. Aparecia muita gente que perdeu tudo tentando comer alguma coisa antes de ir para um abrigo. Eu ouvia as conversas, via o sofrimento, pessoas que perderam amigos e parentes que já tinham encontrado os corpos. Também tinha muita gente sem informação dos parentes. As pessoas chegavam muito sujas de lama. Era muito triste de ver, crianças, idosos.
Então eu nem conseguia sentir nada de dor ou sofrimento meu, porque eu estava bem perto das pessoas à minha volta. São milhares de pessoas num sofrimento difícil de acreditar.
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