A farra da bike elétrica na sociabilidade perversa
Um alerta sobre o avanço do “sem-limite” na vida urbana
“Mire veja”, recomendava Guimarães Rosa no seu “Grande Sertão: Veredas”, para que se observasse algo essencial para além das aparências. Nestes tempos de liquidez que turva a visão, nesta era de instantaneísmo que impede o foco, é preciso mirar e ver o errático caminho que temos riscado no chão da história, uma verdadeira marcha à ré. Quer ver um passo atrás sintomático de um trágico retrocesso civilizatório? “Mire veja” as ruas e suas bikes elétricas onipresentes e onipotentes!
Os errantes veículos e seus errantes condutores podem parecer exemplos miúdos para se falar de tsunami civilizatório. Mas sigamos Guimarães Rosa para ver que não. Bikes elétricas e similares sem senso de ordem e limite são sintomáticos da transição estrutural de uma sociabilidade neurótica rumo ao paradigma perverso de existir.
Num tempo em que todo limite parece abusivo, Dany-Robert Dufour fala de um universo demarcado por uma perversão de segunda ordem, não aquela que subverte a lei, estabelecendo com esta uma relação, mas aquela que rompe com a lei, dando lugar ao império do sem-limite. Num jogo de palavras, se há lei, esta é a do excesso.
Nem todos são perversos, mas lideranças perversas, permissividades naturalizadas, etc, ensejam a perversidade em rede. Como bem mostram as bikes incontidas, tem-se cada vez mais um tempo de negação da realidade, dos limites (lei, ética, etc.), da responsabilização; do triunfo da indiferença, da desvalorização do outro; do imperativo do gozo pessoal; da excessiva manifestação de egocentrismo; da falta de remorso, vergonha ou culpa.
Vivemos uma sociabilidade despudorada, regida, segundo Charles Melman, por uma “nova economia psíquica”, avessa a limites e devotada à ilusória satisfação plena. Como não ver esse trágico quadro civilizacional pintado na cena de bikes motorizadas na contramão, furando sinal vermelho, fazendo percursos imprevistos e impensáveis? “Donas” das ruas, num verdadeiro delírio de onipotência, matam pedestres, atropelam semelhantes com a “leveza” que o veículo inspira, a despeito da sua letalidade sob abusivos comandos.
Nem todos os pilotos de bikes e similares elétricos são perversos, mas o uso majoritário desses meios de transporte evidencia que estamos abandonando o limite como referência na constituição de laços entre semelhantes, para nos digladiarmos na rinha perversa do “pode mais quem tem mais”, rumo ao pódio reluzente da esperteza, do atalho, do abuso e da inconsequência, erguido sobre os escombros da sociabilidade pactuada em torno de regras comuns para a vivência em comunidade.
Não se trata de saudosismos de uma sociabilidade supostamente perfeita, que jamais existiu nem existirá. Mas não parece sábio desprezar os aprendizados da caminhada na hora de se executar a contínua tarefa de se inventar o presente, fundamentando-se o futuro – aonde o deslimite nos leva? Paul Valéry ensina: “Temo que a história não nos dê muita margem à previsão; mas, associada à independência de espírito, ela pode nos ajudar a ver melhor”. “Mire veja.”
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