Totalitarismo tecnológico
De Orwell ao Vale do Silício: como tecnologia e poder moldam a democracia contemporânea
O livro “1984” tornou-se um clássico da ficção política. Nele, George Orwell satiriza o totalitarismo, com base nas matérias que escreveu para a BBC sobre a Alemanha nazista e a Rússia stalinista, durante a II Guerra Mundial. Orwell popularizou termos como “big brother”, polícia do pensamento, novilíngua e criou a expressão 2+2 = 5, para ironizar o slogan do Partido Comunista no segundo plano quinquenal, que incentivava os russos a produzirem em 4 anos o previsto para 5.
A distopia continua assustando gerações de leitores, até porque o totalitarismo vira e mexe põe as asinhas de fora.
Lembrei de Orwell ao ver um podcast em que a jornalista e autora britânica Carole Cadwalladr considerava a participação do Facebook na campanha do Brexit uma ameaça à democracia. Não fica apenas nessa denúncia. Seu alvo são os bilionários do Vale do Silício, para ela um poder alternativo, e com planos de crescer e se tornar muito mais influente com o aperfeiçoamento da IA. Para tanto, precisam de informação. Espertos, obtêm aquilo que necessitam e ainda cobram pelo entretenimento que oferecem no Facebook, Instagram, Google e outros que tais.
Explicando melhor, Carole Cadwalladr avalia que o alinhamento dos oligarcas tecnológicos com o governo autoritário de Donald Trump tem o objetivo estratégico de blindar as empresas de ações judiciais inevitáveis, visto que essa tecnologia se alimenta do furto do trabalho de escritores, fotógrafos, cineastas, músicos e outros produtores de conteúdo cultural. A apropriação indébita de sons e palavras, bens indispensáveis ao desenvolvimento da IA, continuará gratuita enquanto Trump estiver no poder, ou pelo menos é isso que os oligarcas pretendem.
As fotos da posse, em que Trump aparece em companhia de Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Tim Cook e Sundar Pichai levaram Carole Cadwalladr a cunhar o termo “broligarchy”, oligarquia entre irmãos, ou “bros”. Irmãos que competem, brigam, mas são solidários no propósito comum de ampliar seu poder. O precedente russo impõe-lhes cautela. Ao findar a Perestróica, Putin deixou os oligarcas à vontade; contudo, quando se consolidou no poder, exigiu que fizessem o que ele queria, caso contrário eram exilados ou envenenados.
Por isso, Elon Musk trabalhou rápido e tão logo empossado no DOGE invadiu os computadores da Administração federal, assim garantindo acesso livre aos dados de milhões de contribuintes. Elon brigou com Trump e saiu da Casa Branca, mas seu amigo e sócio Peter Thiel, dono da empresa Palantir, assinou contratos de bilhões de dólares com o Pentágono, o ICE e várias agências do Ministério da Saúde e da Receita Federal dos EUA para desenvolver software e projetos de IA.
Vale a pena conhecer um pouco esse Thiel. Nasceu na Alemanha, portanto é imigrante nos EUA, assim como o sul-africano Musk. Com 58 anos, tem uma fortuna estimada em 30 bilhões de dólares. Homossexual, casado com Matt Drauzeisen, diz ser um conservador libertário e como tal proferiu, em setembro, palestras a portas fechadas em São Francisco, nas quais expôs sua visão apocalíptica do mundo. Thiel está convencido de que o Armagedon, ou batalha final entre o bem e o mal, está próximo. Acredita também que o anticristo, ao defender o ambientalismo e as restrições à IA, apressará o desenlace. Não tem certeza, mas sugere que Bill Gates ou Greta Thunberg podem ser o anticristo.
Como tratar um aloprado com contratos de bilhões com as Forças Armadas e o Imposto de Renda? Carole Cadwalladr admite ser difícil, mas não impossível, se a população se organizar. Ela faz pelo menos vinte recomendações, que desenvolve em seu substack. Algumas são previsíveis, como, por exemplo: “livre-se do jugo dos celulares, eles espionam até quando você dorme”. Outras curiosas: “pense nas informações do seu celular como se fossem ‘nudes’ pessoais. O que o FBI poderia fazer com seu histórico de mensagens?”. Outras, pragmáticas: “se alguém se mostra tal como é, acredite no que vê”. Ou ainda: "se parece ameaçador, é porque o plano é dar medo mesmo”. Algumas convidam a uma reflexão mais profunda: “Aprenda com as mulheres negras. Todo o mal foi testado primeiro nelas, e só virou problema quando usado nos homens brancos”. E a que eu mais gostei: “eles não são deuses. São nerds com a sorte de terem nascido no momento certo da história”.
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