As senzalas
A dura realidade das vidas perdidas no transporte marítimo e na mineração
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Dia desses, contemplando a movimentação dos navios de carga que chegam e saem do Porto de Vitória, fiquei a pensar no quão importante é o transporte de mercadorias. A tamanha importância deveria corresponder igual preocupação com a segurança — daí minha surpresa ao descobrir que a cada 4,6 dias um daqueles imponentes navios afunda em algum lugar do planeta. Mais de um por semana! Em 2018, foram 73!
Parece incrível, mas, para que o comércio mundial funcione razoavelmente bem, quase três marinheiros perdem a vida a cada dia, só por conta de acidentes — em 2012, por exemplo, foram 981 mortes.
Mas, pensando bem, mais incrível ainda é que ninguém fala nisso. Se, para fins de comparação, a cada cinco dias caísse um avião de passageiros carregando crianças para férias na Disney, matando umas quinze delas, acredito que a segurança na aviação seria alvo de inquéritos, estudos, denúncias, protestos, passeatas etc.
Como, no entanto, estamos a tratar de pobres marinheiros morrendo por conta de navios claramente inadequados para os rigores da navegação, reina o silêncio.
Há também o caso dos mineiros. São eles os responsáveis finais pela extração de minérios indispensáveis. Não seria demais imaginar que tão relevante atividade fosse cercada dos devidos cuidados, em respeito aos profissionais que passam a vida percorrendo buracos, a cada dia mais profundos.
Mas que nada! A cada ano morrem soterrados, pelo mundo afora, nada menos que 12 mil mineiros — uns 32 deles a cada dia. Também aqui, pouco se fala sobre isso — ou eles.
Fico a pensar em uma pintura de Georges Rochegrosse, magistralmente descrita pelo escritor português Albino Forjaz de Sampaio: “É um quadro que representa a vida. No primeiro plano, muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão corretos como se fossem para um baile. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome. Aquele monte é a ambição de subir na vida. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam. Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga duma derrota”.
E prossegue o escritor lusitano: “Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha é que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares, serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar”.
Não há necessidade de se ir a museu algum para olhar este quadro de Rochegrosse — basta pensar nos marinheiros, mineiros e tantos outros profissionais que, por conta do mundo como ele é, perdem a vida tentando ganhá-la.
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