Paraguai usa energia paga por brasileiros a Itaipu e já deve R$ 9 bi
O alerta sobre o débito está em uma carta enviada à Itaipu pela EmbPar
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Os brasileiros estão pagando na conta de luz parte da energia de Itaipu consumida pelo Paraguai. Por esse uso considerado irregular da cota de energia do Brasil, o país vizinho já acumula com o Brasil uma dívida de US$ 1,8 bilhão (R$ 9,2 bilhões).
Por lei, distribuidoras do Sul, Sudeste e Centro Oeste compram energia de Itaipu, e ela compõe o valor final da tarifa paga nessas regiões.
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O alerta sobre o débito está em uma carta enviada, em 29 de dezembro, a Itaipu pela EmbPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional). Essa nova estatal é quem compra a energia de Itaipu do lado brasileiro após a privatização da Eletrobras. A carta é assinada pelo presidente, vice-almirante Ney Zanella dos Santos, e destinada a cada diretor-geral da usina, o vice-almirante Anatalicio Risden Junior, pelo Brasil, e Manuel Maria Cáceres Cardozo, pelo Paraguai.
O novo diretor-geral de Itaipu, deputado federal Enio Verri (PT-PR), anunciado nesta quinta-feira (26) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vai encontrar detalhado material sobre a questão.
O documento, a que a Folha teve acesso, é acompanhado por uma extensa nota técnica de 39 páginas que trata da evolução dessa conta. Ela traz detalhes para explicar como a Ande (Administração Nacional de Eletricidade), estatal responsável pela compra de energia do país vizinho, faz subcontratações -ou seja, pede menos energia do que efetivamente sabe que vai consumir. .
Pela regra, essa empesa avisa no final de todo ano quanto vai consumir no ano seguinte, e o restante passa a ser a cota do Brasil.
Segundo o descrito no documento, desde 2018, a Ande erra na projeção para menos e entra na cota reservada e paga pelo Brasil. A EmbPar afirma que o procedimento do parceiro desrespeita o tratado que rege as relações bilaterais em Itaipu.
A subcontratação, associada ao uso de parte da cota brasileira, é apontada por especialistas como um dos fatores para explicar a diferença no preço da energia para o consumidor final em cada lado da fronteira, sempre mais cara no Brasil.
Em 2017, o MWh (megawatt-hora) da energia custava para os brasileiros US$ 38,22 (R$ 195) e US$ 27,04 (R$ 138) para os paraguaios. No ano passado, quando ocorreu a primeira redução tarifária em 13 anos, os paraguaios voltaram a pagar valor similar ao de cinco anos antes, US$ 27,57 (R$ 140). O brasileiros, apesar da redução, pagaram US$ 50,49 (R$ 257).
O princípio essencial do tratado binacional é que tudo em Itaipu é dividido meio a meio entre Brasil e Paraguai. Como o Paraguai consome menos energia, o Brasil compra a parte que sobra do parceiro. Atualmente, o Brasil fica com cerca de 85% da energia de Itaipu -os seus 50% a que tem por direito, mais o pedaço que o Paraguai não consome.
Dentro desse contexto, a invasão da cota de energia brasileira é considerada um despropósito maior ainda pelos especialistas que acompanham o tema.
A raiz primordial do embate está na energia excedente da usina binacional.
Itaipu não gera lucro. A venda de sua energia deve cobrir apenas os custos da usina e o pagamento da dívida para a construção. Quando a usina começou a gerar energia acima do que precisava para pagar as contas, ficou acertado que esse excedente, quando ocorresse, custaria menos.
A partilha desse excedente gerou debates. Brasileiros queriam que ela fosse proporcional à cota. Ou seja, se o Brasil consumisse 90% da energia, assim, teria direito a 90% do excedente. Os paraguaios insistiram, e levaram, a divisão meio a meio, alegando que assim se preservaria os princípios do tratado.
Com o passar dos anos, a economia do Paraguai foi crescendo, atraindo indústrias, precisando de mais energia. A Ande, no entanto, não fez alterações expressivas no pedido de cota anual. O Paraguai simplesmente passou a usar parcelas crescentes do excedente, até consumi-lo totalmente. Foi, então, que invadiu a cota brasileira.
A Ande, no entanto, nega a irregularidade. Afirma consumir a energia excedente porque Itaipu tem excedente na potência. Como o consumo é feito em fluxo de energia, essa discussão de cunho técnico alimenta um interminável debate e, por tabela, a conta bilionária relatada pela EmbPar.
RENÚNCIAS, DENÚNCIAS E TENTATIVA DE IMPEACHMENT
O fato de a EmbPar apresentar o levantamento neste momento recebeu diferentes interpretações entre quem teve acesso ao documento.
Alguns acreditam que ele funciona como uma proteção contra uma eventual responsabilização da empresa e de sua equipe. Itaipu, por ser binacional, não pode ser questionada por qualquer autoridade em nenhum lado da fronteira. A EmbPar, ao contrário, pode ser responsabilizada por permitir um prejuízo bilionário aos consumidores brasileiros.
Outros acreditam que o documento faz parte de um movimento para municiar Itaipu na negociação do Anexo C do tratado bilateral.
A possibilidade de revisão será aberta a partir de março, após a quitação da última parcela da dívida contratada para a construção da usina. Como o Paraguai está em período eleitoral, a perspectiva é que os parceiros venham a se encontrar a partir do segundo semestre. A avaliação é que o Brasil terá um trunfo ao comprovar que tem a receber quase US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões).
Segundo especialistas que conhecem Itaipu por dentro, as particularidades dos paraguaios e os detalhes dessa divergência, o governo Lula deve se preparar não apenas para uma negociação dura do Anexo C e de outras questões, mas ficar atento à divulgação do processo pelos paraguaios.
Segundo a Folha apurou com que acompanhou o processo, o Brasil identificou a invasão da cota no segundo semestre de 2018. Alertado pela área técnica, o presidente da Eletrobras, na época, Wilson Ferreira Júnior, comunicou Itaipu que o Paraguai consumia volumes maiores que os projetados pela Ande. Para deixar claro que considerava o comportamento do parceiro grave, avisou que não pagaria pela energia que não recebesse.
A Ande, então presidida por Pedro Ferreira, deu início à argumentação sobre uso de energia excedente.
Como Wilson não arredou o pé, o destino da fatura precisou ser debatido internamente em Itaipu. Não houve solução na diretoria, e a questão subiu para o conselho. O impasse se mostrou intransponível. O caso, então, foi levado à área diplomática. No jargão de Itaipu, esse fórum superior se chama Altas Partes.
A conta naquele ano foi orçada em US$ 54,9 milhões (R$ 279,7 milhões).
Nesse meio tempo, Jair Bolsonaro (PL) ganhou a eleição e trocou cargos de comando. O general Joaquim Luna e Silva foi empossado em fevereiro de 2019 na diretoria-geral de Itaipu prometendo redução na tarifa. Informado sobre a pendência com o Paraguai, ajudou a mobilizar a nova chancelaria, e a negociação foi agilizada.
Em março, o presidente Mario Abdo Benítez visitou Bolsonaro e deu sinal verde para um acordo. Em um gesto de boa vontade, os representantes do Brasil nem forçaram a mão para receber o valor devido. Foi definida uma mudança na contabilidade, com a criação de um sistema pós-pago. Mensalmente, haveria um acerto de contas entre a energia projetada no ano e a realmente consumida em cada mês.
O acordo foi sacramentado e registrado em ata em 24 maio, assinada pelos ministros das relações exteriores. Eram duas páginas objetivas. O conteúdo seria, então, transferido para contratos a serem assinados por Ande e Eletrobras.
Os paraguaios, porém, pediram um tempo antes do anúncio, alegando que o seu governo precisava de tempo para criar uma peça publicitária explicando as razões da mudança. Semanas depois, um vídeo começou a ser divulgado na TV local. Explicava que o Paraguai precisava ser honesto na compra da energia de Itaipu, mal ficou no ar.
Em julho, ocorreu uma reviravolta. O acordo se tornou público no Paraguai na forma de uma denúncia sobre "a ata secreta de 24 maio".
Todas as versões divulgadas foram variações sobre um ato autoritário do Brasil contra o Paraguai. Pressionado por Bolsonaro, Benítez teria permitido mudanças nas regras de pagamento da energia que elevariam os custos locais, anualmente, em US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão). O ambiente político local degringolou.
Cinco envolvidos nas negociações pelo Paraguai pediram demissão, entre eles o ministro das Relações Exteriores, o diretor-geral de Itaipu e o presidente da Ande.
Ao mesmo tempo, começaram a vazar informações de que a ata seria parte de um esquema em que energia barata de Itaipu, do lado paraguaio, seria vendida para uma comercializadora no Brasil ligada à família do presidente Bolsonaro. O Ministério Público abriu investigação.
Em 31 de julho, a oposição avisou que pediria impeachment. No Paraguai, o procedimento pode ser feito em poucos dias. Em 2012, o então presidente Fernando Lugo foi destituído em apenas 36 horas.
No dia seguinte, 1º de agosto, Benítez reagiu. Autoridades posaram assinando um documento que cancelava a ata. Ele fez pronunciamento ao lado da esposa. O clima era de comoção nacional.
O risco de impeachment só terminou quando Bolsonaro concordou que o Brasil anularia a ata. Margeado por governos de esquerda, o movimento foi interpretado como estratégia política para preservar o apoio de Benítez e de seu partido conservador, o Colorado. Os dois se tratam como amigos.
Com as portas fechadas para defenderem os consumidores no Brasil, Eletrobras e Itaipu foram orientadas a contabilizar e divulgar as eventuais futuras invasões da cota brasileira. Os números consolidados pela EmbPar demonstram que a prática não apenas foi mantida como as quantias aumentaram.
Procuradas pela reportagem, EmbPar, Ande e Itaipu não se manifestaram até a publicação deste texto.
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