Inusitada reunião
A experiência em Guaçuí mostrou que diálogo e cidadania podem transformar realidades
Nossa ida a Guaçuí ocorreu quase como uma concessão. O então capitão Marcos Campos, falecido recentemente, cedeu-nos, em 1994, a vez de comandar a companhia local, possibilitando nosso retorno ao interior após anos na capital.
Logo na chegada à cidade, defrontamo-nos com situação inusitada: presidir uma reunião na PMES acerca da insegurança e da desordem em uma zona de meretrício. O juiz de Direito e o promotor de Justiça cogitavam interditar as chamadas “casas-bares” da Vila Alta, fachada para exploração sexual às margens da BR-482, frequentada por caminhoneiros, desocupados, jovens e até adolescentes.
Além da degradação social, havia risco à saúde pública: surgira a denúncia de que uma mulher portadora de HIV teria contaminado caminhoneiros. A pressão era pelo fechamento imediato dos estabelecimentos. Contudo, aquelas mulheres eram vítimas de exclusão, muitas iludidas por falsas promessas de trabalho. As condicionantes da criminalidade descritas por López-Rey — desigualdade e precariedade — estavam presentes.
A inovação surgiu quando a secretária de Ação Social, tia Vera, propôs reunir o comando da PM com as mulheres atingidas pela ordem judicial. Todas compareceram, em encontro tenso, sem consenso. A líder, já enferma de AIDS, declarou que nada mudaria, pois elas, como “trabalhadoras do sexo, também tinham contas a pagar”.
De volta ao Fórum, relatamos a ausência de acordo. O juiz e o promotor, com prudência, concederam prazo mais dilatado. Rompendo o paradigma meramente repressivo, estruturamos uma equipe multissetorial. Instalamos na Vila Alta um Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) e definimos policiamento contínuo, com efetivo fixo, numa experiência de Polícia Interativa.
Em pouco tempo, a realidade mudou. O prefeito Luiz Ferraz Moulin ampliou a iluminação, regularizou a coleta de lixo e antecipou ações de saúde preventiva. A vigilância sanitária passou a atuar periodicamente, enquanto as polícias Civil e Militar reuniam-se regularmente com a comunidade. Com a presença ostensiva do Estado, os frequentadores rarearam e as “casas-bares” encerraram suas atividades.
A localidade ganhou nova identidade, rebatizada João Ferraz de Araújo, tornando-se espaço valorizado. A justiça se fez não apenas por mandados, mas também pelo diálogo e pela preservação da cidadania.
O reconhecimento veio em 12 de março de 1995, quando o Fantástico exibiu reportagem destacando os resultados da Polícia Interativa de Guaçuí, transformando a antiga Vila Alta em exemplo nacional.
A experiência demonstrou que a transformação social ocorre quando o Estado se aproxima não apenas como agente da repressão, mas como instrumento de emancipação e justiça. A ordem pública, assim concebida, converte-se em política de integração cidadã.
Fica a lição: onde o diálogo substitui a força, a dignidade humana prevalece e a justiça floresce. O episódio de Guaçuí não foi isolado, mas marco de como justiça, polícia e sociedade podem convergir em soluções interativas e duradouras para antigos dilemas.
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