Vida performática, psicose midiática e palavras do ano
Leia a coluna de terça-feira (31)
Uma pergunta intriga o fim de ano. “Como vou ser triste em 2024...?”. A trend da felicidade a toda prova é um sintoma pronto e acabado das subjetividades e dos laços que se operam na atualidade.
Um primeiro fato a observar é o “imperativo do gozo”, jargão psicanalítico que traduz a compulsão à satisfação plena de vontades e desejos, a despeito do dado concreto da realidade de que as possibilidades de sofrimento e falta são as mais fartas sob o Sol. Ainda assim, como não gozar em 2024?
Essa obrigação de ser feliz, e exibir essa tal felicidade sem cessar, enseja sujeitos performáticos. Todos os que se queiram colocar na vitrine das telas precisam ser agentes da inveja geral, tal sua capacidade de se superar e superar o outro. Como não ser o melhor em 2024?
Esse sujeito padece de narcisismo exacerbado. Todos nós conformamos uma imagem de si a partir do olhar do outro cuidador. Com ele, temos a confirmação de que existimos, aprendemos a olhar – inclusive a nós mesmos – e nos damos a ver, na esperança de se criar um vínculo amoroso que aplaque a consciência de que somos avulsos num mundo de desamparo.
Esse mesmo circuito escópico-especular (ver e dar-se a ver), fundador de nossa experiência egóica, serve de base para o negócio das redes digitais. Daí o desespero de ver e ser visto por lá. Explorado comercialmente, esse circuito de olhares tem produzido um contingente assustador de mendigos do olhar alheio. Como posso não ser visto em 2024?
Nessa luta pela atenção redentora do outro, mais que conforto, o que se tem é uma fieira de doenças da alma, em função de fatores que vão desde a incerteza da conquista dos olhares em rede, passando pela incapacidade de lidar com frustrações, até o cansaço de lutar para ser visto, num sistema de recompensa incerta à exibição extenuante.
Compulsões, ansiedades, pânicos, melancolias e depressões estão no prontuário potencial dos que se entregam sem medida à vida instável e ingrata das redes: “Como não vou ser feliz em 2024?”.
Nesse percurso, somam-se doses de negação da realidade e construção de personagens múltiplos de variadas competências, constituindo-se uma verdadeira epidemia de psicose midiática, mediante o zapping identitário possibilitado pelas técnicas da informação e seus retoques de ilusão.
O ano de 2024 foi referenciado a palavras como “cérebro podre” e ansiedade. Ambas sacramentam a assunção da porção digitalizada da vida sobre a fatia saboreada em presença da existência. Uma notícia ruim, posto que a vida na fronteira midiática pode primar por tudo, menos por ser humanizada.
Que, para o ano que se inicia, possamos escolher, de antemão, uma palavra-guia que nos reconcilie com nossa humanidade quase perdida, aquela que nos torna capazes de lidar com alegrias e dores, sucessos e insucessos, ganhos e perdas. Que, em tempos de inteligência artificial escravizante e empobrecedora da alma, sejamos capazes de usar nossa própria e peculiar inteligência humana para construirmos a liberdade para sermos livres, como convocou Hannah Arendt.