A internet balzaquiana e a interface do retrocesso
Confira a coluna de domingo (04)
A internet comercial no Brasil acaba de completar 30 anos. Parece que aquele 1º de maio de 1995 foi ontem, na percepção de uma temporalidade instantaneísta que a própria rede das redes ajudou a fundar. Trata-se de uma efeméride que convida muito mais ao pensar do que a velinhas a soprar.
A exploração da internet permitiu que se instituísse o que o professor Muniz Sodré denominou como “continente de bytes”, referindo-se a um novo ambiente apto à existência, um ciberterritório onde experimentamos sentidos e vivemos experiências que marcam a totalidade do nosso dia a dia.
Ou seja, pela primeira vez na história, acessamos um outro ambiente vital, inaugurando uma fase de dupla dimensão para efetivarmos a vida, a presencial e a virtual. Do que se pode concluir que vida digital é vida real, e não uma ficção apartada da realidade.
Até aqui parece que se fala de um conto de fadas, com sortudos enriquecendo seu cotidiano com um mundo de liberdade, garantindo-lhes habilidades divinas de ubiquidade, onisciência e onipotência. Na virada do milênio, dizia-se mesmo que a conexão em rede constituiria uma “inteligência coletiva”, nas palavras de Pierre Lévy.
De toda sorte, o que se comprova é a observação cortante de Umberto Eco, de que as redes sociais dão o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. “O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a detentor da verdade”, alinhava Eco.
Nessa toada, as redes foram o lugar de nascimento das fake news, ou, diria, a verdade dos imbecis imbecilizantes, aos quais se acrescentariam criminosos, extremistas, golpistas, perversos e outros que atacam o humanismo, a democracia e tantas conquistas árduas da civilização iluminista.
Mas não é só. A existência bidimensional acaba suscitando um cotidiano eminentemente regulado para o exibir-se nas redes, criando uma legião de mendigos do olhar alheio, a existir em dose dupla e viver pela metade – viver, e também matar e morrer, para ser vista.
Ademais, precisa-se remarcar que esse território é um empreendimento. Trata-se de propriedade privada, dominada por big techs. É local de trabalho, ainda que seja labor disfarçado de diversão. E constitui-se como praça de comércio, alçapão digital de captura e venda de atenção. É como Anastácia, mítica “cidade invisível” de Calvino, onde “você acha que está se divertindo, quando não passa de seu escravo”.
Por óbvio, nem tudo é desgraça no cibercontinente – quantas marcantes histórias não se formam em suas paragens! Mas, pelo que se tem visto, já é preciso reinventar o recém-criado. Com as “técnicas doces”, porque extremamente adaptáveis, como observou Milton Santos, temos caminhado para uma realidade mais amarga.
Como bem escreveu Freud, sobre a ilusão do poder deificador das tecnologias, o homem não parece feliz em seu papel de “Deus de prótese”. Com a mais dócil das técnicas, temo-nos tornado crescentemente pessoas piores.
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