O futuro sem destino e os novos inícios
"O tempo da Páscoa pode ser inspirador"
O tempo da Páscoa pode ser inspirador. Do sentido original da celebração do fim do cativeiro dos hebreus ao da suplantação da morte para os cristãos, pode ser um convite à reflexão acerca da existência que cumprimos sob o Sol. Assim, entre escravidões e mortificações corriqueiras, estaríamos dispostos a continuamente reinventar a vida, transfigurando o dia a dia ordinário em cotidiano pascal?
Aos navegantes do oceano das emancipações e superações, um aviso: nesses mares, o futuro não tem destino! Isso porque, das etiquetas que se fixam aos corpos que habitamos ao olhar com que nos percebemos, passando pelos rumos que damos à caminhada civilizatória da nossa espécie, de natureza mesmo só temos o ponto de partida – o caminhar está sempre a se inventar.
Tamanho livre-arbítrio pode ser algo encantador ou aterrorizante. Depende do observador. Mas, nesse horizonte sem cartografia, eivado por desafios colossais, temos o alento de infinitas possibilidades de reinvenções, de promover novos inícios, como salientou Hannah Arendt.
De Freud, duas proposições ajudam a desvendar a complexidade da vivência sem roteiros “naturalizados” – e, por isso, com alguma autonomia à vista. A primeira é que, admitindo-se a potencialidade de felicidade possível, “não há um conselho válido para todos; cada um tem de descobrir sua maneira particular de ser feliz”.
Ademais, a chance sem fim de se reinventar pode se figurar como um gatilho a potencializar a percepção de desamparo, que é estrutural do humano. Nesse caso, em vez de emancipar, a consciência da vida autoral e sem script pode mesmo é resvalar para o contrário, para a busca das fórmulas prêt-à-porter de viver.
Ou seja, todo algum possível bem-estar é autoral e implica determinação e resiliência. Vocacionados à felicidade ímpar como suas digitais, por exemplo, vivem em guerra sem trégua entre os desejos de si e as demandas do Outro.
É exatamente nesse sentido que não podemos esquecer o dispositivo que faz a vida fluir: os encontros. Lembremos que, ao fim e ao cabo, nossa passagem por aqui terá sido a soma das convivências que cultivamos.
De toda sorte, se a autenticidade é desafiante e, no mais das vezes, íntima viagem solitária, é igualmente libertadora, exigindo apenas o que Guimarães Rosa poeticamente enfatizou: coragem. E coragem à la Theodore Zeldin, como “disposição de encontrar o inesperado”.
Para Zeldin, “ocorre um desperdício de oportunidades sempre que um encontro se realiza e nada acontece. Na maior parte dos encontros, orgulho ou cautela ainda proíbem alguém de dizer o que se sente no mais fundo do íntimo. O ruído do mundo é feito de silêncios”.
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Que este domingo seja dia de vislumbrar possibilidades de novos inícios, de reinvenção cotidiana da existência, liberta e emancipada de tantos cativeiros e mortificações que nos aprisionam e sufocam.
E, como o futuro não tem destino, que a vida seja de pura inspiração e de toda coragem para encontros destemidos, eloquentes e transformadores. Boa Páscoa – todo dia!
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Psicanálise (UERJ), doutor em Comunicação (UFF) e professor titular na Ufes