“Tomei chicotada de verdade e fiquei em cima de pregos”, diz intérprete de Jesus
Rodrigo Nery conta sua experiência como intérprete de Jesus durante 20 anos no Auto da Paixão do Grupo Sal e Luz
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Após 20 anos interpretando Jesus no Auto da Paixão de Cristo apresentado em Vila Velha pelo Grupo de Teatro Sal e Luz, da Paróquia Nossa Senhora da Glória, o lojista Rodrigo Nery, 45 anos, deixa o papel.
Para dar vida ao principal personagem do espetáculo, o comerciante já foi além do uso de megahair para aumentar sua semelhança com o homenageado. Tudo em prol da evangelização e da arte.
Sua trajetória em cima dos palcos é marcada por chicotadas de verdade, cuspe na cara dado pela própria filha – quando a mesma interpretou o diabo – e ele até chegou a ficar apoiado em cima de pregos durante a cena de crucificação.
“Por não ser ator e pela minha fé, queria sentir 1% daquilo que Jesus passou. Então, implementei essas chicotadas reais, que foram dadas até o ano passado. Ficava bem machucado”, lembra Rodrigo.
Sua última encenação como Jesus ainda contou com outra situação que chocou a plateia. “Uma das minhas filhas estava no papel de capeta e eu pedi para que ela cuspisse na minha cara. As pessoas que sabiam da nossa relação familiar ficaram impactadas”.
Carregar a cruz também foi um desafio ainda maior no ano passado, quando a madeira de apoio do pé quebrou e ele teve que se apoiar em cima das cabeças dos pregos.
“Fiquei em cima deles e não podia falar nada porque estava com microfone. Só fiz com a cabeça para que os intérpretes dos soldados me erguessem mesmo assim. Foi o ano mais difícil e a gente não fazia ideia de que seria o último”, conta Rodrigo, que desta vez vai interpretar o discípulo Pedro.
Ele deixa o papel de Jesus porque está num processo de discernimento vocacional para o diaconato permanente. “Estou saindo de período preparatório, fazendo estágio pastoral para iniciar o 1º ano de Teologia”.
A identidade de seu sucessor é mantida em sigilo. “É uma pessoa madura e estamos trabalhando para que ela seja um Jesus único. No ano passado, ele foi dublê em uma das cenas e ninguém percebeu. Foi um estágio”, brinca Mônia Garcia, fundadora do Grupo de Teatro Sal e Luz e mulher de Rodrigo.
A encenação será apresentada gratuitamente no dia 18 de abril, às 18h, na quadra da MUG.

ENTREVISTA
“Me chamam de Jesus” - Rodrigo Nery, lojista
- A Tribuna: Foram 25 anos interpretando Jesus?
Rodrigo Nery: São 25 anos de peça, mas nos primeiros anos fui outros personagens. Mas ali já comecei a me encantar pela história de Jesus, pela proximidade que o teatro me proporcionava dessa narrativa.
- O teatro te aproximou da igreja?
Quando fui chamado para o teatro, eu não caminhava na igreja. Já tinha caminhado e aí, no período de adolescência, tive um afastamento. Quando eu tinha acabado de sair do quartel, recebi o convite da até então minha melhor amiga e hoje minha mulher para entrar no teatro.
Eu não era aquele modelo de pessoa de igreja, era brigão. Só que a beleza e a grandeza do teatro são exatamente iguais àquele povo que caminhava atrás de Jesus. Tinha gente de tudo quanto é tipo. Aqui todo mundo é recebido, respeitado e amado. Já teve ano que pessoas que declaravam-se ateus participaram na encenação. Nós acreditamos no poder transformador da palavra encenada.
- Como assumiu o papel de Jesus?
Éramos muito felizes com o ator que desempenhava o papel antes, mas ele teve um problema de coluna sério e precisou abandonar a peça 30 dias antes da apresentação. Como eu já tinha o texto decorado, assumi e conseguimos desempenhar a nossa missão. De lá para cá foram 20 anos interpretando Jesus.
- Como é passar esse papel para frente?
Essa passagem, num primeiro momento, foi difícil de absorver no coração, na consciência, mas quando veio o “sim” da pessoa – porque não é fácil substituir alguém que está há 20 anos no personagem –, isso me confortou.
- Por que manter em sigilo o novo nome?
O sigilo não é só para causar impacto, mas para preservá-lo também, porque o primeiro ano sempre é o mais difícil, né? Você acaba sendo personificado. Muitos me chamam de Jesus mesmo. Mas ninguém é dono da missão, a missão é de Cristo, nós só somos continuadores. Então é importante essa transição.
- Por que deixar o papel?
Acredito também que é chegada a hora, como Jesus fala, né? E chegou a minha hora. O estágio pastoral talvez tenha sido a maior motivação. Mas talvez fosse o que eu precisava, porque eu teria uma certa dificuldade em deixar o papel por conta do apego e amor que tenho, por tudo que o teatro transformou em mim. Mas é preciso navegar para águas mais profundas e confiar na direção do Espírito Santo.
- É uma pessoa que já faz parte do teatro?
Sim. No ano passado mesmo, ele desempenhou oito papéis e foi o dublê de Jesus. O interessante é que ninguém imaginava que neste ano ele seria Jesus.
- Qual será seu papel?
Por incrível providência, porque eu não acredito em coincidência, é um santo com o qual me identifico muito. Foi confiado a mim interpretar Pedro, talvez para também dar um pouco mais de segurança ao ator que vai fazer Jesus. Pedro sempre está ali, ao lado de Jesus.
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