“Por que só eu escapei?”, Questiona sobrevivente de acidente aéreo com 123 mortes
Ricardo Trajano, único passageiro sobrevivente de acidente aéreo em 1973, questiona por que teve sorte
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O ano era 1973 e o desejo de Ricardo Trajano, na época com 21 anos, era fazer sua primeira viagem internacional para conhecer Londres, no dia 11 de julho. Estudante de Engenharia, ele trabalhava como estagiário e a passagem foi paga com as economias. Músico e roqueiro, a viagem tinha um propósito: conhecer a terra dos Beatles.
O voo da Varig partiu do Galeão, no Rio de Janeiro, mas, faltando cinco minutos para o pouso no aeroporto de Orly, em Paris, onde haveria uma escala, Trajano percebeu uma fumaça perto dos banheiros.
O que era uma pequena fumaça tomou conta do avião e causou a morte de 123 passageiros. “Quando a fumaça tomou conta do avião, senti a morte me abraçar. Não teve grito, pânico. As pessoas morreram sentadas, com o cinto afivelado. Por que só eu escapei?”, questiona até hoje.
Ele se tornou o único passageiro sobrevivente do voo 820, da Varig. Há 30 anos, Ricardo mora em Belo Horizonte, Minas Gerais, mas em 1993 morou em Vitória, onde teve uma loja franqueada em um shopping da capital.
Hoje, aos 72 anos, pai de duas filhas, compartilha sua história em suas palestras pelo Brasil. “Estou com 51 anos de lucro, de renascimento”, comemora.
A Tribuna - Aquele voo era o primeiro internacional?
Ricardo Trajano - Meu sonho era conhecer Londres. Eu estudava Engenharia e era roqueiro, também era músico. Era meu sonho ir para Londres, em 73 os Beatles já tinham terminado, mas havia bandas como The Rolling Stones e Pink Floyd. Eu estagiava e nas férias de julho economizei meu dinheiro e entrei em uma agência da Varig, única empresa que, na época, fazia voos internacionais. Saí de lá com minha passagem.
Como ocorreu a escolha do seu assento no avião?
Hoje não se fala tanto, mas naquele tempo, eu li, e as pessoas comentavam, que quando acontecia um acidente aéreo, a cauda traseira do avião era a parte que ficava mais protegida. Eu fiquei com isso na cabeça.
Naquele tempo você escolhia o seu lugar quando ia fazer o seu check-in no aeroporto. Eu cheguei e falei: 'quero a última fileira', mas disseram que não seria possível porque era o local onde a tripulação descansava, mas que havia vaga na penúltima fileira, cadeira 27 F, na janela. Foi esse local que me salvou.
A fumaça começou perto de você?
Exatamente na projeção do toalete. Eu fui um dos primeiros a ver, mas era uma fumaça insignificante. Por puro instinto soltei o cinto e fui para a frente da aeronave. Parecia que tinha alguém me impulsionando. O impressionante é que todo mundo ficou sentado.
Quando cheguei lá na frente o comissário me deu uma bronca: 'garoto, você quer visitar de novo a cabine. Não pode, o avião está chegando, faltam cinco minutos, volte para seu lugar'. Desobedeci, passei do lado dele. Fecho os olhos e lembro como se tivesse alguém impulsionando e dizendo: 'não volta'.
O que viu quando chegou lá?
Quando eu cheguei lá na frente, em pé, perto da divisória da cabine, a fumaça tinha tomado conta de todo o avião. Fumaça preta.
Houve tumulto?
Não. A fumaça era tão tóxica que ela envolvia você sentado nas poltronas. Você não enxerga um palmo na sua frente, a primeira respirada te nocauteia. A segunda você desmaia, e a terceira você morre. Todos morreram sentados na poltrona. Não teve tumulto.
Você acredita então que as pessoas morreram asfixiadas?
Sim. Eu estava em pé e comecei a me despedir da vida. Falei: 'vou morrer, e tenho 21 anos', pensei na minha família e nos meus amigos. O avião começou a inclinar muito e eu caí no chão. Senti literalmente alguém me abraçando, me puxando. Senti como se fosse a morte me dando um abraço. O avião fez o pouso de emergência e fez um barulho muito alto. As chamas foram caindo e carbonizando todos.
Eu estava deitado de bruços e uma placa enorme caiu nas minhas costas, mas eu não senti porque estava desmaiado. Tenho até hoje as marcas da queimadura nas costas, coxas e nádegas, que encaro como meu troféu. O primeiro corpo perto da porta de saída era o meu e os bombeiros viram que eu estava respirando e me tiraram.
Quantos sobreviveram?
Dos passageiros fui o único sobrevivente. Na tripulação eram 17 e sobreviveram 10. Todos estavam dentro da cabine.
Depois que o avião fez o pouso de emergência, do que você se lembra?
Ele pousou em uma plantação de cebola. Fui levado para o hospital e cheguei lá sem roupa, muito queimado e irreconhecível. Fiquei em coma por 30 horas. Me confundiram com Sérgio Balbino, comissário que havia morrido, que tinha o mesmo porte que o meu. No hospital, ouvia me chamando de Sérgio Balbino. Pedi um papel e escrevi meu nome, telefone, endereço e nome do meu pai. Na minha casa, o clima já era de velório, mas minha mãe dizia que eu não havia morrido. De velório, virou uma festa.
Qual era seu estado de saúde?
Passei dois meses no CTI em Paris, depois um mês no hospital Beneficência Portuguesa no Rio. Quando cheguei ao hospital em Paris, meu estado era caótico, ninguém me dava uma semana de vida. Tive um edema pulmonar generalizado, queimadura de terceiro grau, fiz dezenas de transfusões de sangue, toda hora expelia sangue pela boca.
Teve medo de voltar a voar?
Não. Em fevereiro de 1975, entrei na mesma agência da Varig, não me identifiquei e disse que queria a passagem para Londres. Depois contei a minha história.
Como o acidente mudou sua perspectiva sobre a vida?
Minha vida passou a ser um presente, cheio de propósitos e significados. Todo dia eu levanto e agradeço ao 'cara lá em cima'.
Se pergunta por que só você, dos passageiros, escapou?
Sim. Um ano depois, encontrei com um amigo que sempre teve um lado espiritual muito forte. Contei para ele que senti a morte me abraçando. Ele me disse: “não era a morte, era seu anjo da guarda. Era a vida te protegendo”.
Fiquei anos me perguntando por qual motivo não abraçou as outras pessoas. Até o dia em que comecei a fazer as palestras e fui entender que esse meu anjo me deu um propósito de vida, que é ajudar muita gente com as palestras.
Perfil
Ricardo Trajano
- Tem 72 anos e é o único passageiro sobrevivente do desastre do voo 820 da Varig, em Paris, em 1973.
- Mora atualmente em Belo Horizonte e tem duas filhas, Júlia e Marina.
- Após sobreviver ao acidente aéreo, Ricardo encontrou em sua segunda chance um novo propósito, e hoje realiza palestras pelo Brasil e conta sua história no Instagram @ricardochusttrajano. No ano que vem, lança seu livro “Sobre Viver”.
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