Ver de verdade, encontrar a saudade
Leitores do Jornal A Tribuna
Numa viagem ao Japão, nossa tradutora explicava o costume local de se visitar a antiga capital, Kyoto: “Todo ano, a gente vem aqui encontrar a saudade”. Na tentativa de ser gentil com o português, um belo ato falho de pura sensibilidade: em vez de “matar a saudade”, cultivar o reencontro. Equívoco certeiro, afinal, falta é condição do desejo, o motor da vida.
Por causa da tragédia que cruzou vírus com desamparo, e gerou uma monstruosidade, nossas vidas se tornaram só saudade. Para além daquelas centenas de milhares de saudades que jamais se aliviarão com um reencontro, é chegado o almejado tempo de se reiniciar de mansinho a agenda do face a face, mesmo que de máscara.
O fim da pandemia ainda é miragem, mas a contingência da vacinação já coloca à vista a estação de estar junto de novo com quem se quer bem. Contudo, curarmo-nos da condição de doentes de distância não será fácil.
Poderá haver alguma dose extra de medo de circular em meio à insistente morte insidiosa. Teremos de encarar paisagens transtornadas, sem a loja, o restaurante, e com a rua transformada ainda mais em um lugar de desabrigo e fome e violência ainda maiores.
Fundamentalmente, seremos confrontados com os vazios cavados pelo desaparecimento de amigos, amados ou conhecidos que nunca mais nos saudarão com um sorriso ou nos acolherão com um abraço de coração a coração.
Talvez seja um tempo de alguma solidão doída, algum choro escondido ou escancarado, em que olhos cansados de multitelas, e sedentos de ver de verdade, constatem mesmo é o vácuo que o abismo pandêmico instalou no percurso dos dias.
Por ora, nesta travessia virótica, nosso maior foco é chegarmos vivos à outra margem. Quando esse horizonte virar chão de caminhada, encontraremos o ressoar da catástrofe a avivar a consciência de que um tanto de nós morreu.
Teremos de fazer um luto – reconhecer perdas, chorar mais e falar e falar até formar uma narrativa que obture os vazios com um véu de memória. E assim seguiremos, tentando nos reconhecer na vida aos pedaços.
Mas, ainda que se tenha perdido muito e demais, aos viventes terá restado a chance da reconstrução. E isso é tudo. Até porque, à la Cecília Meireles, a vida só vale reinventada. Nessa direção, à oportunidade dos reencontros adicionam-se as possibilidades de novos encontros, o maior valor da existência. Porque, no fim de tudo, teremos sido os encontros que colecionarmos na cruzada da vida.
Assim, não custa relembrar Zeldin: “Ocorre um desperdício de oportunidades sempre que um encontro se realiza e nada acontece. Na maior parte deles, orgulho ou cautela ainda proíbem alguém de dizer o que sente no mais fundo do íntimo. O ruído do mundo é feito de silêncios”.
Voltando à tradutora japonesa, que possamos reencontrar muitas saudades e também constituir novos encontros a suscitar outras tantas, tecendo uma vida com incontáveis e sucessivos laços de desejo a driblar as teias e os ecos da morte.
José Antonio Martinuzzo é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.
SUGERIMOS PARA VOCÊ:
Tribuna Livre,por Leitores do Jornal A Tribuna