A banalização da morte e a desumanização dos viventes
Leitores do Jornal A Tribuna
Nem no pior dos pesadelos, algum brasileiro em sã consciência poderia ter imaginado que testemunharia a morte de 300 mil, com a trágica cifra de mais de três mil óbitos por dia. Mas acontece que o pesadelo da pandemia não é diabólico delírio noturno. É um real surreal sem fim. Uma travessia no escuro do desamparo, sem alvorada à vista nesta interminável noite de breu temperado com fel.
Infelizmente, não há um sono turbulento do qual acordar. Há apenas uma realidade infame para a qual despertar. E tal despertar já passou da hora, pois, ao cruzarmos a linha dramática dos cadáveres aos montes de milhares, o que está em jogo é mesmo o traço mais distintivo da nossa espécie, qual seja, a empática potência de enxergar no outro um semelhante.
O caminho mais reto rumo à barbárie é coisificarmos o próximo, retirando-lhe a dignidade e o direito inalienável de existir como humano. Esse laço perverso pode mesmo sustentar uma sociabilidade ampliada, banalizando-se o mal, trivializando-se a morte. Conforme Hannah Arendt, o mal em escala surge e se alastra com o desprezo radical do exercício das habilidades do nosso espírito (pensar, querer e julgar), inviabilizando uma possível ética de responsabilidade fraterna.
Ou seja, só desumaniza o próximo aquele que já perdeu a sua própria humanidade, tendo anestesiado em si as faculdades intelectuais que lhe garantiriam a distinção de atravessar os dias como um humano. Ao assistirmos inertes a este morticínio, ao cruzarmos insensivelmente este vale tenebroso de morte vil, corremos o risco, como povo, como nação, de chafurdarmo-nos em ignóbil desumanidade.
Ao abrirmos mão das capacidades do espírito humano, desconectamos nossos comportamentos do mundo da civilização, abraçamos, inconcebivelmente, a barbárie, reduzindo, por exemplo, vidas perdidas a estatísticas frias, convertendo semelhantes mortos em meros números numa macabra e sombria contabilidade.
Conforme alertou Pascal, “é perigoso mostrar demais ao homem como ele é igual aos animais, sem lhe mostrar sua grandeza. E é também perigoso mostrar-lhe demais sua grandeza sem sua baixeza. Mais perigoso ainda é deixá-lo ignorar as duas”. Tem-se, pois, que a maior ameaça à civilidade são sujeitos que, exterminando seu potencial humanístico, não pensam – não se pensam, não se responsabilizam, não se importam, como bem descreveu Hannah Arendt, apenas farejam, rastejam, e seguem...
Secular é também o alerta de Pico Della Mirandola, ao propor uma fala de Deus dirigida a Adão: “A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o seu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Poderás degenerar até aos seres que são bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores, que são divinas, por decisão do teu ânimo”.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Mídia e Cotidiano e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.
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