O Conforto das Certezas Instantâneas
Quando a repetição vira evidência, a verificação perde lugar
Da Amazônia que “vai virar uma imensidão de areia em 15 anos” às previsões abstratas de que “bastam alguns bilhões para acabar com a pobreza no mundo”, passando pela destruição do “pulmão do mundo” e por chefes de redação derrubados por manipular dados, estamos falando de episódios separados por quase quarenta anos. À primeira vista, parecem desconexos. Na prática, são produtos de uma mesma lógica: a que transforma autoridade em escudo.
Há ideias que não precisam de evidência para virar verdade. Basta alguém com alcance, acesso e convicção suficientes para que o mundo aceite. Palco, autoridade, tom e repetição são o bastante para deixarmos de analisar e passarmos apenas a reconhecer.
Mesmo frágeis, quase improvisadas, essas frases ganham corpo de dogma antes de qualquer questionamento. Ditas com a postura certa, opiniões ganham o peso de verdade; repetidas à exaustão, a repetição passa a funcionar como critério de evidência. A informação em si perde relevância.
Quando uma ideia veste a roupa simbólica da autoridade, entra no debate em vantagem. A psicologia das multidões explica o resto: uma frase ouvida muitas vezes se torna familiar, e o que é familiar aceitamos sem resistência, não porque seja verdadeiro, mas porque não exige esforço.
A repetição nos poupa do trabalho de pensar, e isso, em tempos de saturação, é quase um alívio.
As estruturas de poder distorcem, reprimem ou sequestram a verdade. Escrever a verdade, dizia Bertolt Brecht em 1934, não é um ato moral abstrato, mas uma prática política que exige coragem, método, estratégia e responsabilidade social. Quase um manual antecipado daquilo que insistimos ignorar.
Vivemos a estranha era em que, no tempo em que levaríamos para pensar, a opinião já virou certeza coletiva. A repetição criou conforto. O conforto virou adesão. A adesão se transformou em certeza. A dúvida passa a parecer imprópria. O atalho cognitivo se veste de convicção e fecha a porta ao contraditório. Duvidar é enquadrado como inadequado. Em alguns casos, como negacionismo.
Aqui entram os atores com autoridade – institucional, simbólica, científica, jornalística – explorando os vieses que nos fazem acreditar rápido demais. A pressa cognitiva (“preciso ter opinião”), somada ao conforto narrativo (“está todo mundo falando”) e à influência social (“há uma autoridade falando por mim”) cria o teatro da autoridade. A fala vira verdade não porque é correta, mas porque uma opinião passou a ser tratada como urgência, dando voz a quem fala alto, de cima ou primeiro – não a quem fala certo.
A gente se acostuma, mas não devia. Quando anulamos nosso julgamento individual, deixamos que crenças, emoções e diagnósticos sejam propagados em grupos sem qualquer fundamento. Quando o desconforto finalmente aparece, costuma ser tarde para discordar ou expor um ponto de vista. A ansiedade social nos mantém em estado de alerta, enquanto aplaudimos certezas que nem sequer passaram pelo trabalho de existir.
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Jaque Paes é executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
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