Antonino: o rosto da Orquestra Criança Cidadã na nova edição do Concerto pela Paz

Na música, o contrabaixo é a base invisível. Não se impõe como o violino, mas sustenta todo o edifício sonoro. É chão, é âncora, é espinha dorsal. Foi nesse instrumento grave e imponente que Antonino Tertuliano, menino do Coque, encontrou a possibilidade de reinventar o próprio destino: hoje, ele é o rosto de Pernambuco que une jovens do Recife com outros músicos de países feridos pela guerra.
Aos 14 anos, quando entrou para a primeira turma da Orquestra Criança Cidadã, a música ainda era apenas curiosidade. Uma realidade que contrastava com a violência do Coque no então ano de 2006, onde o som de tiros era um dos mais ouvidos na localidade. Ali, na região central da capital pernambucana, também havia uma guerra. Os mais novos podem não saber.
O bairro onde Antonino cresceu gritava violência. Dentro da sala de ensaio, no entanto, ele descobriu outra linguagem — e com ela um outro mundo.
Hoje, aos 32 anos, Antonino é mais do que um músico de carreira internacional. Ele é o pilar da Orquestra Criança Cidadã na nova edição do Concerto pela Paz, projeto que reúne jovens do Recife e de países magoados pela guerra para tocar lado a lado. A turnê, apoiada pelo Ministério do Turismo, começou nesta terça-feira, 30 de setembro, em Seul, Coreia do Sul, que vive em conflito com a Coreia do Norte.
Em um tempo em que fronteiras e conflitos se multiplicam, ver jovens que se reúnem para tocar o coração das pessoas, invés de lutar e chorar, é uma lufada de esperança.
“O significado que o Criança Cidadã tem para mim é enorme. Eu tenho imensa gratidão”, disse recentemente.
A primeira nota

Em 2006, quando o juiz João José Rocha Targino idealizou a Orquestra Criança Cidadã, o Coque tinha o menor Índice de Desenvolvimento Humano do Recife. A escolha da comunidade foi proposital: “Nós escolhemos a comunidade do Coque porque tinha os piores índices de desenvolvimento humano e o maior índice de violência”, recorda Targino.
Foi nesse cenário que Antonino fez um teste de aptidão musical. Não sabia música, mas havia disciplina e brilho no olhar. O menino que descobriu o contrabaixo, responsável por ancorar o ritmo da orquestra, logo se destacou.
A orquestra oferecia muito mais do que aulas: alimentação, uniforme, atendimento médico, odontológico, apoio pedagógico e inclusão digital. Era a oportunidade de outro caminho. “O projeto remodelou o bairro e a comunidade. Esse projeto social apresentou não só uma profissão, mas outra perspectiva de futuro”, contou.
Do Coque ao mundo

A trajetória de Antonino ganhou corpo com passagens pela Universidade Federal de Pernambuco, Conservatório Pernambucano de Música e Orquestra Sinfônica de Goiânia.
Depois, o salto internacional: em Israel, conquistou bolsa integral na The Buchmann-Mehta School of Music. Em 2019, participou de um concerto histórico — a despedida do maestro Zubin Mehta, após meio século à frente da Filarmônica de Israel.
Como o contrabaixo, que é a voz grave e imponente da orquestra, ele manteve o tom profundo da sua vida. Em 2021, após seis audições, foi aprovado para integrar oficialmente a mesma Filarmônica. Do Coque, foi ser estrutura e estabilidade num dos palcos mais respeitados do planeta, atualmente no centro da crise mundial. Um símbolo de que a música pode, de fato, abrir portas antes inalcançáveis.
A guerra interrompeu, a música salvou

Em 2023, Antonino voltou a ser testado pelo destino. Ele vivia em Tel Aviv, em Israel, quando eclodiu o conflito entre o país onde passou a morar, na época, e o Hamas. Ele tinha ido a Salzburgo, na Áustria, para um processo seletivo de mestrado quando os ataques começaram.
“Eu estava em Salzburgo um dia antes do meu embarque para Israel. Só iria iniciar o mestrado em março”, lembra. A guerra antecipou sua despedida de Tel Aviv, quando decidiu permanecer na Áustria.
Foi aceito na Mozarteum University (uma das mais prestigiadas e renomadas universidades de arte e música da Áustria e da Europa) e passou a integrar a Niederbayrische Philharmonie Orchester (Orquestra Filarmônica da Baixa Baviera). Mais uma vez, a música foi escudo e refúgio.
Concertos pela Paz

Agora, Antonino retorna ao projeto que o revelou. Ao lado de mais 13 pernambucanos, está entre os brasileiros escolhidos para representar a Orquestra Criança Cidadã na nova turnê dos Concertos pela Paz.
A missão dele foi tão maior do que a música. Antonino desempenhou papel de ajudar no recrutamento de músicos convidados de países marcados por conflitos e tensões históricas: Irã, Israel, Ucrânia, Rússia, Coreias do Sul e do Norte. São jovens como ele, que encontram no ensaio uma forma de falar outra língua.
O grupo do estrangeiros que ajudou a recrutar é formado pelos iranianos Amirmahziar Ghazemi Alavijeh (violino) e Naeim Hatami (viola); os israelenses Ori Shauel Wissner Levy (violino) e Simon Lemberski (viola); os ucranianos Oleksandr Puzankov (violino) e Petro Kuzma (violoncelo); os russos Nikita Shkuratov e Zlata Synkova (violinos); as sul-coreanas Lee Young Kim (violino) e Youngseo Oh (contrabaixo); e as norte-coreanas Sooyoung Kim (violino) e Rina Choi (sohaegeum).
Já a Orquestra Criança Cidadã selecionou 11 jovens músicos recifenses, em audições às cegas, com idades entre 16 e 22 anos, para participar. Eles serão acompanhados por Antonino, pelo professor Davi, do núcleo de Igarassu, e se apresentam sob a regência do maestro José Renato Accioly.
Uma turnê pela paz
Depois de Seul, a jornada segue para o Japão: Hiroshima receberá dois concertos — um no Parque Memorial da Paz, às 11h, e outro no Teatro YMCA, às 19h30, ambos em 4 de outubro. No dia seguinte, 5 de outubro, será a vez de Osaka, no Pavilhão Brasil da Expo 2025.
O encerramento está marcado para 8 de outubro, na Praça São Pedro, no Vaticano, diante do Papa Leão XIV.
Mais do que um roteiro de apresentações, trata-se de um manifesto: jovens de nações que travam guerras ou guardam cicatrizes históricas se reúnem para tocar em uníssono.
"É possível conquistar o mundo”

Antonino não esquece de onde veio. Sempre que retorna ao Brasil, faz questão de visitar mestres e alunos. “Apresento aos jovens a minha realidade atual e digo que é possível conquistar o mundo”, afirma.
Ele sabe: cada nota sua é recado. Cada aparição nos palcos do mundo é mensagem de que o chão onde cresceu pode ser duro, mas não determina o limite do voo. O futuro não pode ser apenas determinado por índices de violência, mas por notas que ultrapassam fronteiras.
O contrabaixo, grave e imponente, segue sustentando. O violino, leve e agudo, segue encantando. E, no encontro desses dois, nasce uma música que é maior do que a soma de seus instrumentos: é a música da cidadania, da paz, da esperança.
A orquestra como destino coletivo

Neste ano de 2025, a Orquestra Criança Cidadã completa 19 anos de atividades. Já passaram por lá mais de 2 mil crianças e adolescentes, com 715 formados em música. Atualmente, o projeto tem 450 jovens de 7 a 21 anos do Coque, do distrito de Camela, de Ipojuca, e da zona rural de Igarassu. Desde 2013, há mais de 10 anos, o projeto realiza apresentações internacionais todos os anos.
Mais do que concertos, entrega cidadania. Para muitos, como Antonino, é a diferença entre repetir a violência ou reinventar a própria história. Com música.
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