A Páscoa, o pedágio do luto e a virtuosidade na reinvenção
Leitores do Jornal A Tribuna
No auge da tempestade virótica, ele se tornou o lastro-promessa que não nos deixava afundar na travessia do isolamento e das incertezas mortificantes. No cúmulo da escuridão mortífera em revolto oceano pandêmico, fixou-se como o farol a inspirar a dura navegação.
A miragem esperançosa do “novo normal”, hoje praticamente esquecida nas conversas que animam os diálogos, é agora o porto seguro onde ancoramos os veleiros da existência, para, com máscaras caídas e vacina no braço, seguirmos no chão de uma outra história.
Nada mais significativo, portanto, do que esta Páscoa para aqueles brindados com a sobrevida pós-pandemia. Uma verdadeira e real celebração da passagem a um novo tempo, da vitória da vida sobre a morte.
Nessa viagem de reorganização de rotas, roteiros e rumos existenciais, temos à frente o pedágio do luto, para, espera-se, tomarmos uma direção virtuosa na condução dos dias, destino à altura de quem, em verdade, ganhou uma segunda chance sob o Sol.
Para Freud, o luto é “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.”. Não se trata de “estado patológico”, “é superado após um tempo” e perturbá-lo pode ser inapropriado e prejudicial.
Trata-se de crucial simbolização da perda, cujo processo se inicia pela necessária, apesar de dolorosa, consciência do vazio escavado pela ausência. Admitida a privação incontornável, inicia-se a constituição de uma narrativa que vai obturar frestas e lacunas.
O objeto amado se substitui por uma memória sobre ele, lembrança que, em vez de fazer latejar o coração e sangrar a alma, torna-se companhia para os passos adiante daqueles que já retomaram a plena consciência do privilégio de estar vivo, inclusive a partir e com a presença simbólica de quem se foi, seja como inspiração, seja como gratidão, por exemplo.
A pandemia exige um luto múltiplo. Por óbvio, para aqueles que perderam parentes e pessoas próximas. Mas há também o luto como nação, um país que assistiu à morte trágica de quase 700 mil irmãos de pátria, numa mistura nefasta de desamparo e letalidade virótica.
O não-luto pode ensejar um processo de fixação dos viventes ao que se perdeu, gerando uma melancolia imobilizante. É preciso processar a dor, suas causas, vetores, fantasmas e agentes, para podermos seguir como um país tocado pela pulsão de vida e não submetido às garras paralisantes do gozo mortífero.
Retomada a cadência da exuberância, que esta Páscoa nos desperte para o inventar de um normal realmente novo, especialmente no tocante à busca da lucidez e do comedimento cotidianos que nos afastem de angústias rotineiras, tanto aquelas advindas de excessos e radicalismos quanto aquelas oriundas da inapetência para a vida e do desencanto com a beleza que ela promete e pode entregar, a partir da conciliação do desejo com a serenidade.
José Antonio Martinuzzo é doutor em Comunicação, professor na Ufes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória
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