Tamanho do órgão e tipo sanguíneo são critérios de compatibilidade em transplantes
Entenda como ocorre o 'match' entre ó órgão e receptor
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Há pouco mais de 13 anos, Noé Rolli, 80, embarcava para Indianápolis, nos Estados Unidos, em busca daquela que era sua única alternativa de resolver um problemão de saúde. Seus órgãos estavam começando a pifar e um transplante multivisceral (com estômago, intestinos, fígado, pâncreas e rim) era o tratamento que restava.
Até chegar nesse cenário, Noé, que trabalhava na indústria metalúrgica, passou por outros apuros. Teve uma trombose mesentérica em 1979, que lhe custou a maior parte do seu intestino. Depois, em 1980, teve uma peritonite, infecção tratada ao longo de mais de dez operações e procedimentos para limpeza. Foram meses vivendo no hospital, mas conseguiu se recuperar satisfatoriamente, apesar dos ajustes de rotina por conta da nova configuração abdominal.
Anos depois, em 2000, descobriu que o fígado estava operando a 30% de sua capacidade. Os rins também iam pelo mesmo caminho, até que chegou na hemodiálise. Havia sido constatado que ele tinha hepatite C, doença viral provavelmente adquirida em alguma transfusão de sangue. A situação se degradou até que, depois de uma decisão judicial, Noé embarcou para realizar o transplante multivisceral em um dos poucos centros habilitados à época, o Hospital Universitário da Indiana University Health.
"Todo dia eu levantava e dizia: 'Você não vai ganhar de mim.' Nunca deixei a doença me vencer", relata.
O médico que o operou, o curitibano Rodrigo Vianna, hoje diretor do Serviço de Transplante de Órgãos Sólidos da Universidade de Miami, conta que Rolli chegou em falência de múltiplos órgãos, o que fez com que seu caso ganhasse prioridade na lista, por causa da gravidade.
"Às vezes, o paciente já apresenta uma doença hepática avançada e, nos países que realizam transplantes multiviscerais, esses pacientes recebem uma priorização, pois se trata de uma cirurgia muito grande, que envolve vários órgãos", diz o médico, que negocia seu retorno para o Brasil no início de 2025, para encabeçar o novo centro de transplantes da Rede D'Or.
"Em 2011, os médicos foram bem diretos: se eu não fizesse o transplante, eu não chegaria à Copa de 2014. A única saída era fazer a cirurgia lá fora. Não dava para esperar. Quando embarcamos para Indianápolis, eu pesava 49 kg. Três dias depois que chegamos lá, tive uma obstrução intestinal e fui internado", conta Noé, que passou por uma primeira cirurgia de 12h e depois por mais uma, de 6h, para concluir o processo.
Foram 45 dias de recuperação na UTI e mais algumas semanas até finalmente ter alta. Hoje, come até feijoada, mas "com moderação", e a meta agora é voltar aos exercícios diários, aos quais se dedicou desde 2011 e parou somente por causa da pandemia.
Segundo Vianna, "Noé realmente é um dos milagres da medicina, e o mais longevo paciente dessa modalidade do mundo". Segundo as estatísticas, após 10 anos do procedimento visceral com rim, permanecem vivos apenas cerca de 25% dos pacientes.
Para fígado, coração e pulmão --o que também vale para transplantes multviscerais-- os fatores mais preponderantes na análise de compatibilidade são o tipo sanguíneo e o tamanho do órgão, que deve ser proporcional ao corpo do receptor. Para que aconteça o match é importante também que a distância entre órgão e receptor seja favorável. Rins podem aguardar por mais de 30 horas até o transplante, já o coração não deve passar de 6 horas fora de um peito.
Também é importante estudar a possibilidade de o organismo do receptor rejeitar o enxerto. Em casos de pessoas que já foram transplantadas ou, como no caso de Noé, que foram expostas a sucessivas exposições a transfusões, esse risco aumenta. E esse também é um critério para que essas pessoas ganhem prioridade.
O coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo, Francisco Monteiro, explica que o sistema de transplantes funciona de maneira online, permitindo que a própria equipe de cuidado gerencie o cadastro técnico de seus pacientes.
Esse cadastro inclui a atualização, inscrição e suspensão de pacientes, além da inserção de dados e exames necessários para manter o paciente na lista de espera. Quando o transplante é realizado, a equipe responsável confirma o procedimento no sistema e é obrigada a reportar periodicamente o seguimento pós-transplante, em intervalos de 30 dias, 60 dias, seis meses e anualmente, até o paciente morrer ou necessitar de outro transplante. Nesse último caso, o paciente é reinscrito na fila de espera.
A central de transplantes supervisiona todo o sistema e tem acesso às informações dos doadores que estão sendo notificados pelas Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), que são responsáveis por identificar e viabilizar os doadores. No estado, existem dezOPOs funcionando, diz Monteiro.
De acordo com a legislação, a central de transplantes é responsável pela seleção dos receptores para cada órgão doado, seguindo rigorosamente a ordem dos pacientes listados para aquele doador. A equipe médica do receptor é então contactada, e o órgão é oferecido ao primeiro paciente da fila, numa listagem automática.
A equipe tem a opção de aceitar ou recusar o órgão, justificando por que não é adequado para seu paciente. Se isso ocorrer, o órgão pode ser oferecido a outro. Esse processo de oferta continua até que todas as equipes e pacientes listados sejam consultados. Caso ninguém aceite o órgão, ele é descartado.
"Falando em motivos de descarte, por exemplo, no caso de corações de doadores acima de 55 anos, nenhuma equipe os utiliza, pois a probabilidade de problemas nas coronárias, como cálcio depositado, é grande. Isso faz com que o coração seja automaticamente descartado. Da mesma forma, se o pâncreas for de um doador acima de 50 anos, ele também é recusados. Hoje, com doadores cada vez mais em faixas etárias elevadas, a taxa de aproveitamento de corações é de apenas 11%", explica Monteiro.
Especialmente no caso de transplante de rim e de medula óssea, é importante fazer uma análise de compatibilidade imunogenética entre doador e receptor, a partir do chamado HLA, o antígeno leucocitário humano. Trata-se de um conjunto de genes altamente polimórfico, ou seja, que varia muito entre as pessoas.
"A função biológica do HLA não é atrapalhar transplantes; ele serve para apresentar peptídeos, pedaços de proteínas, para as células do sistema imune. Quando ele faz isso bem, o corpo reconhece o que é próprio e o que é estranho, evitando reações adversas, mas, no contexto do transplante, isso pode significar rejeição", explica Renato de Marco, codiretor do Instituto de Imunogenética da Afip (Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa), responsável pelos exames e análise de compatibilidade dos cerca de 14 mil pacientes que aguardam um transplante no Hospital do Rim, em São Paulo.
Ele explica que, uma vez identificado o possível doador, é feita a análise do HLA, especialmente de três pares de genes, no caso de transplantes de rim. Aí calcula-se o número de incompatibilidades.
"Você não pode transplantar um órgão de um doador cujo HLA seja incompatível com o receptor, pois pode ocorrer uma rejeição hiperaguda, que tem alto grau de mortalidade. Rejeições podem ser assintomáticas no início, por isso são realizadas biópsias periódicas no primeiro ano após o transplante, para detectar qualquer sinal antes que os sintomas apareçam", explica José Eduardo Afonso Jr., coordenador do programa de transplantes do Hospital Israelita Albert Einstein.
Curiosamente, no contexto do transplante multivisceral, o fígado desempenha um papel protetor em relação a outros órgãos, como o rim, contra a rejeição. Isso graças à capacidade de modular a resposta imune do receptor ao reduzir as reações dos linfócitos (células do sistema imunológico), que poderiam levar à rejeição.
Outro fator para o sucesso de transplantes de órgãos sólidos é o monitoramento no pós-operatório. Isso inclui a administração de imunossupressores, medicamentos que evitam que o corpo do receptor ataque os órgãos transplantados. "As medicações são fundamentais para evitar a rejeição, mas precisam ser monitoradas constantemente para garantir que o paciente não esteja imunossuprimido em excesso, o que aumentaria o risco de infecções", diz Afonso Jr.
Esse fino ajuste é um dos fatores que podem ter ajudado Noé a chegar bem aos 80 anos, completados neste mês de setembro. "Os órgãos que recebi vieram de uma menina de 23 anos. Se as pessoas tivessem mais consciência sobre a doação, muitas outras vidas poderiam ser salvas. Eu sou a prova viva de que a doação de órgãos pode fazer milagres", diz Noé.
Como ocorre o match entre órgão e receptor?
Lista de espera
Após a detecção da falência de um órgão, o paciente é inscrito em uma lista baseada em fatores como gravidade da condição, tempo de espera, compatibilidade com doadores e adequação para o transplante
Critérios de compatibilidade
Para determinar a compatibilidade, considera-se o tamanho do órgão, que deve ser proporcional ao corpo do receptor, o tipo sanguíneo e a distância entre doador e receptor, especialmente em órgãos com tempo de isquemia (que resiste fora do corpo) curto, como o coração. Também é necessário avaliar periodicamente a presença de anticorpos no sangue do receptor, especialmente em pacientes que já receberam transfusões ou transplantes, o que pode aumentar o risco de rejeição
Antígenos leucocitários humanos (HLA)
Os antígenos leucocitários humanos (HLA) são proteínas importantes para o sistema imunológico que são determinantes para o sucesso de alguns tipos de transplantes, especialmente de rim e medula óssea --geralmente são avaliados 3 ou 5 pares de genes, respectivamente. Quanto menos incompatibilidades, maior a chance de sucesso. Para outros órgãos, como fígado e coração, a compatibilidade de HLA é menos crítica
Teste de crossmatch
Especialmente no caso do transplante de rim, é realizado um teste conhecido como crossmatch, em que o soro do receptor é misturado com células do doador para verificar se o sistema imune reagirá contra o órgão. Se o teste for positivo, significa que há uma reação imunológica e o transplante não é recomendado devido ao risco de rejeição hiperaguda
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