Nova técnica de radioterapia trata câncer com dano menor a tecidos saudáveis
Chamada de Flash, a técnica tem sido objeto de estudos em vários países, inclusive no Brasil
Escute essa reportagem
Um novo tipo de radioterapia que utiliza radiação em altas doses, aplicadas em frações de segundos, promete reduzir danos a tecidos saudáveis e potencializar o tratamento de tumores pediátricos ou localizados perto de órgãos críticos, como o cérebro e o coração.
Chamada de Flash, a técnica tem sido objeto de estudos em vários países, inclusive no Brasil, e está sendo desenvolvida em parceria com o maior laboratório de física de partículas do mundo, o Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), palco de uma das grandes descobertas da história da física: o bóson de Higgs, apelidado de "partícula de Deus".
O diferencial da radioterapia Flash é o uso de altas doses de radiação em milissegundos em vez de minutos, como acontece hoje. Com isso, a expectativa é que o tumor seja destruído com o mínimo de danos aos tecidos saudáveis que estão próximos dele, um evento adverso que pode ocorrer nos atuais tratamentos.
A Folha de S.Paulo visitou o Cern no mês passado como parte da programação do Congresso Mundial de Câncer, que aconteceu em Genebra, na Suíça. O laboratório está localizado na fronteira da Suíça com a França. Desde março deste ano, o Brasil se tornou o primeiro país das Américas a ter o status de estado-membro da organização.
Segundo Benjamin Frisch, pesquisador no Cern, estudos experimentais em animais demonstram que um dos efeitos mais promissores da terapia é a preservação dos tecidos normais. A hipótese é que isso ocorra devido à rápida entrega da dose de radiação.
Com isso, há redução de efeitos colaterais agudos, como inflamação de pele, e tardios, como fibrose, necrose e disfunção de órgãos. Ele diz que a tecnologia também potencializa o efeito destrutivo sobre o tumor.
O radio-oncologista Gustavo Nader Marta, presidente da SBRT (Sociedade Brasileira de Radioterapia), afirma que, no Brasil, os estudos com a Flash estão em fase muito inicial, concentrados em tumores de cabeça e pescoço e sarcoma (tumor ósseo).
Ele explica que o mecanismo envolvido na técnica ainda está sendo estudado, mas acredita-se que possa estar relacionado à modulação do oxigênio. "As células tumorais têm uma biologia diferente, menos disponibilidade de oxigênio. Então elas permanecem mais sensíveis e suscetíveis aos danos causados pela radiação", afirma.
De acordo com ele, embora a Flash ainda esteja em fase experimental e sejam necessários mais estudos para atestar a sua eficácia e segurança, a expectativa é que ela possa ser usada em casos de tumores localizados próximos a órgãos críticos, como o cérebro, coração ou pulmões.
Também teria indicação para tratamento de câncer pediátrico. "Crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos tardios da radiação, como distúrbios de crescimento e desenvolvimento. A Flash pode oferecer uma alternativa mais segura a longo prazo."
Pacientes com câncer de cabeça e pescoço seriam outros candidatos. Tumores nessa região frequentemente exigem altas doses de radiação, mas a proximidade com estruturas críticas (como a mucosa oral e a garganta) muitas vezes limita as doses. Com a Flash, poderia usar doses mais altas ao tumor com menor toxicidade aos tecidos circundantes.
A Flash foi testada pela primeira vez em pacientes em 2018, mas à época foram utilizados aceleradores lineares que fornecem feixes de elétrons de baixa energia (cerca de 6-10 MeV, unidade de medida de energia, empregada em física atômica e nuclear, equivalente a um milhão de elétrons-volt), que não conseguem penetrar profundamente em determinados tumores. Por isso, a terapia só foi testada em tumores superficiais, como os de pele.
Agora, os pesquisadores do Cern, em colaboração com o Hospital Universitário de Lausanne (Suíça), estão construindo uma máquina que pode acelerar elétrons para 100 a 200 MeV, tornando possível usar a Flash para tumores mais difíceis de serem alcançados. Os primeiros testes clínicos começam em 2025.
"Usando a tecnologia do acelerador de elétrons linear de alto desempenho, projetamos uma instalação que é capaz de tratar tumores grandes e profundos em prazos muito curtos necessários para a terapia Flash", afirma Walter Wuensch, líder do projeto no Cern.
A Folha visitou também laboratórios do HUG (Hospitais Universitários de Genebra), onde pesquisadores estão testando a tecnologia para destruir tumores cerebrais em animais. Um estudo com camundongos mostrou que o Flash eliminou tumores resistentes às atuais radioterapias, sem induzir efeitos colaterais tóxicos.
Segundo Marie-Catherine Vozenim, chefe do setor de radio-oncologia do HUG, em estudos experimentais, a tecnologia vem demonstrando que é tão efetiva quanto a radioterapia tradicional mas com uma considerável redução dos efeitos adversos.
Os primeiros testes clínicos em pacientes com glioblastoma, uma das formas mais agressivas de tumor cerebral e que não tem cura, estão previstos para começar em dois anos.
O radio-oncologista André-Dante Durham Faivre, também do HUG, explicou que a escolha do glioblastoma como tumor alvo para os ensaios clínicos ocorreu porque ele é difícil de ser atingido com cirurgia ou radiação, sem que haja destruição de áreas do cérebro.
"Se você der uma dose muito alta de radiação, você destrói o tecido cerebral normal também. Se você não der uma dose alta o suficiente, o tumor sobrevive e cresce novamente."
O desafio dos glioblastomas, afirma, é que, mesmo quando o tumor é removido cirurgicamente, as chances de recidiva são altas. A hipótese é que isso ocorra porque algumas células-tronco tumorais se propagam para diferentes partes do cérebro onde permanecem e depois reativam.
A repórter viajou à Genebra a convite da UICC (União Internacional para Controle do Câncer)
MATÉRIAS RELACIONADAS:
MATÉRIAS RELACIONADAS:
Comentários