Promotor vai investigar grupo religioso que pressionou família de menina estuprada a manter gravidez
A Promotoria da Infância e Juventude de São Mateus vai investigar um grupo de pessoas que teria pressionado a família da menina de 10 anos, que engravidou após sofrer abuso sexual, a manter a gravidez. Com argumentos religiosos e citando um suposto apoio da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, o grupo oferece à família “juízes do bem” e médicos em troca da menina manter a gestação, fruto de estupro. E ainda pede que a avó se manifeste contrária à interrupção da gravidez quando for questionada.
O grupo teria ido pelo menos duas vezes à residência dos familiares. Parte das visitas foram gravadas em áudio e vídeo por alguém que estava na casa. Num desses vídeos, que a coluna Plenário teve acesso, a avó da criança chega a desmaiar e famíliares mandam o grupo embora. Entre as pessoas, é possível identificar um pré-candidato a vereador que é líder de um projeto cristão no município. Nas redes sociais ele aparece como filiado ao PSL.
Pressão e apoio de fora
Num dos áudios obtido pela coluna, um homem e uma mulher pressionam a avó. “Vão tentar uma liminar para fazer o aborto nela. Então, a gente está querendo evitar que isso aconteça, queremos salvar o bisneto da senhora. Só que eu, mesmo com o projeto, mesmo com o suporte, não tenho força. Mas a senhora tem. A senhora tem a sua voz, eu não sou familiar dela, mas se a senhora se pronunciar contra, olha eu... (inaudível).”, disse o homem que toma à frente do grupo na abordagem à família.
E ele continua: “A gente como cristão está aqui para oferecer essa ajuda, mas essa voz quem pode ter peso é só a senhora, então se a senhora permitir eu gostaria de falar com uma médica aqui pra senhora ouvir o risco que tem esse procedimento que eles querem fazer. E é o quê? É levar ela para induzir um parto normal, tem que aplicar medicação na vagina dela para induzir o parto”. “É mais um trauma”, complementa a mulher que acompanha o rapaz.
Um dos familiares, aparentemente a avó, interrompe os dois e afirma que a menina vítuma de estupro é muita nova e muito pequena. É aí que o homem oferece ajuda de um corpo clínico.
“Eu tenho um corpo médico, especialista em gravidez de risco, em situação de criança de 10 e 11 anos, isso não deveria ser normal, mas é coisa que acontece com uma certa frequência. Aqui na nossa cidade, que é interior, parece uma coisa absurda, mas nas grandes capitais, no Nordeste, acontece. E essa equipe que eu estou colocando à disposição da senhora é uma equipe especialista, são médicos, ginecologistas, que sabem lidar com esse tipo de situação dando toda a garantia de que fazer o que eles querem fazer agora é mais risco do que levar a gestação à frente e fazer uma cesárea, com anestesia, com tudo, correto. Eu estou aqui falando em nome do projeto mas eu tenho juízes que são cristãos, que são do bem, que estão do nosso lado, eu tenho um corpo de médico inteiro em São Paulo, Brasília”.
O rapaz também diz ter acesso à ministra de Direitos Humanos. “Inclusive eu conversei ontem com a assessora da ministra Damares, só para você saber o nível de informação que eu tenho. Olha onde chegou, à ministra Damares! Então a gente quer que a senhora use a voz que a senhora tem para defender esse bisneto da senhora”, insiste o rapaz.
“Deus permitiu”
Nesse momento do áudio, o diálogo começa a ficar mais tenso e o grupo discute com a família. “Se tem uma alma ali, foi Deus quem colocou”, disse o homem, sendo rebatido por uma mulher que aparenta ser familiar da menina: “Não foi Deus não. Não foi Deus que colocou”.
“Mas Deus permitiu”, interrompeu a mulher que faz parte do grupo que pressionava a família. Ela já tinha dito que a família poderia doar o bebê.
“Deus permitiu uma barbaridade dessa?”, questionou a familiar. “Permitiu, ué”, responde a mulher.
Após esse diálogo, a família encerra a conversa: “Resumindo, a gente não podia nem estar aceitando vocês aqui. A gente está a favor do aborto sim, porque é uma criança gerando outra criança. A gente está correndo atrás de tudo para poder abortar sim. É o que a gente pode falar. Não podia nem estar aceitando vocês aqui. Se ninguém teve acesso ao nome dela (da menina), como vocês estão sabendo?”, questiona a familiar. “É para você ver o que Deus está querendo fazer”, diz o rapaz. A avó passou mal em seguida e foi amparada. O grupo, então, foi embora.
Os áudios, assim como o vídeo, já estão de posse da Promotoria. O promotor responsável pelo caso, Fagner Rodrigues, disse que será investigado quem repassou o contato e o endereço dos familiares para o grupo religioso e possíveis políticos que estariam por trás da pressão aos familiares. Eles podem responder por constrangimento ilegal além de outros crimes, como ameaça. “Trata-se de uma violação de alguém que já está sendo violado, que ofende os direitos humanos”. O procedimento será instaurado nos próximos dias.
A menina viajou na manhã deste domingo (16), com um familiar e uma assistente social, para fora do Estado, para fazer a interrupção da gestação determinada pela Justiça estadual.