Linchamento em Jardim São Paulo: justiça com as próprias mãos é um mal necessário?
Homem espancado e jogado em frente à delegacia do bairro mostra descrença das instituições
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Na ausência de respostas do poder público e da própria Justiça, populares estão sujando as mãos de sangue no Recife. Em Jardim São Paulo, Zona Oeste da capital, um homem que cometeu um assalto foi linchado a ponto de massa encefálica sair de sua cabeça. Ele foi jogado na porta da delegacia do bairro desfalecido e posteriormente socorrido pelo Samu para o Hospital da Restauração.
Segundo informações de moradores, o homem assaltou uma mulher na região usando uma faca. Logo em seguida, começou a ser perseguido por homens que corriam a pé, motos e até carros. Chegando na Praça de Jardim São Paulo, ele foi bastante espancado. Uma mulher que reclamou do comportamento coletivo e estava filmando chegou a ser ameaçada de ter o celular retirado.
Durante o espancamento, mais de 10 pessoas rodeavam o corpo do assaltante. Na ocasião, estava ocorrendo uma feirinha na praça. O assalto seguido de espancamento ocorreu no último sábado, durante o dia.
Este é o segundo linchamento público em menos de semana. Antes do que aconteceu em Jardim Paulo, no dia 22 de outubro, um grupo de pessoas espancou um homem que teria tentado roubar um veículo na Avenida Rosa e Silva, perto da Smartfit. Nos dois casos, os estados de saúde das vítimas (dessa vez os bandidos) não foram conhecidas.
Nesse comportamento coletivo, é possível perceber os dois lados de uma tragédia que mostra o rompimento do contrato social. Por um lado, as pessoas estão revoltadas com tanta violência, indignadas por trabalharem tanto para depois serem roubadas, enquanto o bandido passa por audiência de custódia e sai livre. Contudo, o outro ladro cruel da história é ver trabalhadores e pais de família (uma massa anônima) usando da força física para fazer justiça com as próprias mãos, na tentativa de matar alguém.
O filósofo Friedrich Nietzsche criou a célebre frase: “não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles”.
Véu da impunidade
No Brasil e em Pernambuco, linchamentos públicos têm se tornado comum, também sob o véu da impunidade. Tais práticas, quando se tornam recorrentes, são um sintoma profundo de múltiplas falhas sociais e institucionais.
Esse fenômeno é um reflexo de frustração coletiva, mas também de uma ruptura no contrato social. Em contextos assim, os cidadãos assumem papéis que deveriam ser da justiça e das forças de segurança, o que aponta para uma desconfiança generalizada nas instituições.
Ordem social rompida
José de Souza Martins, um dos mais importantes sociólogos brasileiros, tem um estudo no qual a cultura moderna tenta suprimir a violência ritual e simbólica que, no passado, era institucionalizada em práticas como a antropofagia.
Segundo Martins, os linchamentos contemporâneos surgem como uma “cultura da morte substituta”, onde o corpo mutilado da vítima é fragmentado em uma tentativa de reconstituir simbolicamente a ordem social rompida.
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1. Falha do sistema de justiça
José de Souza Martins, um dos mais importantes sociólogos brasileiros, tem um estudo no qual aponta a impunidade e a ineficácia da justiça formal como motivos para atos de violência popular. A percepção de que o sistema não protege adequadamente, citada por ele, encontra eco em análises de outros estudiosos da sociologia e criminologia no Brasil. A ideia de que o linchamento é um "remédio bárbaro" se alinha à crítica sobre a omissão estatal, frequente em estudos sobre segurança pública.
2. Erosão da confiança nas forças de segurança
Martins observa que o crescimento dos linchamentos está ligado ao descrédito nas forças policiais e à busca de vingança imediata, especialmente em situações onde a polícia é ineficiente. Essa tese é amplamente corroborada por estudos de segurança pública no Brasil, que destacam a insuficiência policial como fator que empurra a população para a justiça com as próprias mão
3. Desigualdade e exclusão social
Martins conecta a prática de linchamento com desigualdades sociais históricas no Brasil. Ele sugere que a violência popular é, em parte, um reflexo de insatisfações profundas, exacerbadas por desigualdade e exclusão. A marginalização social cria um terreno fértil para respostas violentas a pequenos crimes, especialmente em áreas vulneráveis.
4. Legitimação da violência
Martins menciona que a violência tende a se normalizar quando a sociedade não reage aos linchamentos, criando um ciclo de permissividade e violência. Outros estudiosos também destacam que discursos políticos populistas e a exaltação da "justiça pelas próprias mãos" contribuem para a legitimação social da violência.
5. Consequências para a democracia e os direitos humanos
Martins sugere que os linchamentos são uma ameaça direta ao Estado de Direito, comprometendo a legitimidade das instituições democráticas. Outros especialistas em direitos humanos no Brasil também discutem como a banalização da violência enfraquece as estruturas democráticas e mina a confiança pública nas instituições.
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