Ney Anderson: o Apocalipse de todo dia no Recife sem linha reta
O Recife que não cabe em cartões-postais, mas que carrega o caos e a redenção diariamente
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O Recife do escritor pernambucano Ney Anderson não cabe em cartões-postais. Nos 67 contos curtos e cortantes de Apocalipse todo dia, a própria cidade é uma personagem viva, dramática e com contradições — carregando o caos e a redenção no mesmo corpo.
Aqui, o apocalipse não é um espetáculo celestial, mas o ônibus que demora demais, a frase dita aparentemente por um cachorro num quarto trancado, o corpo coberto por jornais que ninguém lê, a mulher que segura páginas soltas da Bíblia no meio da rua.
No livro que será lançado coincidentemente (se é que essas coisas existem) na Estação da Luz, em Olinda, no dia 29 de agosto, às 19h, o leitor leva algumas pancadas. Elas sacodem o cotidiano para revelar o que se tenta varrer para baixo do tapete.
E o que aparece, ali, é a matéria incômoda da existência: violência, solidão, degradação, morte, e uma Recife que pulsa entre a hiper-realidade e o transcendente.
As carnes que se comem são outras…

Em entrevista exclusiva ao Tribuna Online PE, o recifense faz questão de lembrar que, embora o título evoque o último livro da Bíblia, onde Cristo volta de forma triunfante antes da Batalha Final, não se trata de uma obra religiosa.
Não estranhe, contudo, se ele o colocar, irremediavelmente, diante do céu e do inferno a todo momento. “Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres.” Essa frase de Jesus é citada na abertura do livro, que já foi pré-lançado na Flip pela editora Patuá.
O Apocalipse de Ney Anderson também não aborda o fim do mundo protagonizado por zumbis, doenças incuráveis, quedas de meteoros ou desastres ambientais. Uma surpresa positiva em meio a tantas séries e filmes apocalípticos apreciados por muitos, inclusive pela repórter geek que faz esta resenha.
Não há humanos despedaçados por zumbis na obra de Ney Anderson. Os devoradores, bem como os devorados, são os mortais e suas pequenas tragédias somadas.
“São apocalipses todos os dias, apocalipses diários, esses pequenos apocalipses (..)”, responde, para depois fazer a analogia com o Juízo Final cristão. “Tem fim do mundo, tem destruição, mas também tem ali esperança.” Para ele, essa esperança é tão importante quanto a ruína.
Esse contraditório é a melhor magia do livro, que, na sua brutalidade de ter a morte e o homicídio como uma constante, também traz sutilezas poéticas e a visão literal de uma flor em meio ao concreto que avança.
Ney ainda presenteia o leitor com alguns encontros com o sobrenatural, como um taxista levando um desconhecido para o cemitério de Santo Amaro. Nada mais normal para uma cidade famosa pelas histórias mal assombradas.
Um olhar que recusa o cartão-postal

Recife, para o escritor pernambucano, jornalista e crítico literário, não é apenas cenário. “A cidade é uma personagem dentro das minhas histórias. (…) O sol, o rio, o mangue, as mazelas, o caos”. A lama e o caos de Chico Science, inclusive lembrando nas páginas do livro.
É o Recife onde mendigos dormem sob marquises enquanto um repórter persegue um disco voador na Dantas Barreto; onde uma freira carmelita benze bêbados no asfalto quente; onde uma senhora sobe no ônibus e, ao ouvir o pregador de megafone, responde que já paga os próprios pecados todos os dias.
Ao contrário do Recife ufanista das campanhas turísticas — “a cidade mais linda em linha reta do planeta” —, o dele carrega o cheiro ácido das ruas, o calor insuportável, o suor das calçadas e a música dissonante dos vendedores ambulantes.
Sua referência não está nas vitrines: “Recife, para mim, é minha Gotham City. (…) Assim como era a cidade do Rio de Janeiro para Rubem Fonseca.”
Nesse universo, não há começo, meio e fim que encerrem a vida. Mesmo quando um conto termina, a reflexão continua, como no texto “Num piscar”, em que uma relação virtual termina na rua, sob o peso de uma história de violência invisível.
Brutalidade e poesia

Ney considera sua escrita de brutalista, mas não no sentido gratuito da crueldade. “Não é o choque pelo choque. (…) São textos duros, na maioria das vezes, mas ele tem uma poesia para contar aquilo.” É verdade, contudo, que há contos sem qualquer redenção.
Em O corpo, por exemplo, um homem morto divide espaço com clientes que escolhem sanduíches e sucos. O calor e a desesperança disputam a causa da morte. O IML leva embora “sem nome, sem reza, sem choro, sem comoção, sem piedade, sem vela, nem futuro, nem passado”. Novos clientes chegam para o almoço.
Para os mais ingênuos, é bom lembrar que a hiper-realidade não se trata de uma viagem do escritor. Cenas como as descritas no livro já aconteceram no ano passado em um supermercado da cidade.
Esse é o tipo de absurdo que ele diz observar em ônibus lotados ou a pé pelas ruas. “Eu gosto muito de andar de ônibus para isso. (…) Quando nasce uma nova ideia, quando aparece uma nova ideia, eu sinto aquele frio na barriga. (…) Eu tiro foto, eu gosto muito de fotografar.”
Casas duras, como a cidade

Se as ruas são duras, as casas não são menos. Anderson mergulha naquilo que ocorre atrás das portas fechadas — relacionamentos abusivos, desejos de morte, segredos de família — e coloca o leitor diante do desconforto absoluto.
Há mulheres que pensam em sufocar o próprio bebê, esposas que contemplam assassinar o marido enquanto passam café, filhos que fotografam a mãe morta com a dedicação que ela não permitiu em vida. Nada é exagerado ao ponto de soar inverossímil; tudo é dito com a secura que o horror verdadeiro exige.
Ao mesmo tempo, o sagrado atravessa essas narrativas de forma paradoxal. Igrejas, freiras, imagens da Imaculada, procissões e rezas convivem com a morte, o crime e a perdição.
O religioso, aqui, não purifica — apenas confirma que o humano é incapaz de separar pecado e devoção.
A cidade como tabuleiro
O Recife de Ney - nome dado pelo seu pai em homenagem ao artista Ney Matogroso - é um grande tabuleiro. Na cidade, circulam catadores que cantam no meio da tarde na Praça do Diário, mulheres que vendem flores artificiais, criminosos que rezam antes de matar.
Em Apocalipse todo dia, os contos captam o instante em que a vida se inclina para a tragédia ou para o milagre. Como no “Um café para nós duas”: uma filha retorna do enterro da mãe e encontra a mesa posta, o cheiro do café e o retrato sorridente. O mistério é deixado no ar.
Essa fronteira entre real e sobrenatural, ele admite, é intencional. “Não é apenas uma realidade essa que a gente vê, mas uma realidade que se expande até nisso, na questão do sobrenatural, do mistério.”
Entre o Éden e a queda

Indagado sobre o Recife em linha reta, que esconde as mazelas para debaixo do tapete, ele reage: “Nem o jardim do Éden foi tão perfeito assim, né? (…) Nossa cidade tem qualidades, tem tudo isso, mas também tem essa parte brutal.”
O livro oscila entre as duas margens: de um lado, o paraíso possível; de outro, a inevitável queda. No conto “O céu e o inferno”, um bêbado dança ao som de Reginaldo Rossi enquanto uma freira carmelita lhe fala sobre as armadilhas do diabo. Na esquina, o cheiro de tempos imemoriais se mistura ao riso inesperado.
Apocalipse todo dia não é bíblico, mas tem a tensão do fim. O último livro da Bíblia, diz Ney, não é só destruição: “Eu acho que não teria outro livro para encerrar a Bíblia (…) porque ele traz uma esperança.”, diz.
Autor e obra, mundos distintos
O paradoxo maior é que, fora do papel de escritor com acidez e ironia cortantes, Ney é, segundo ele mesmo, “é a pessoa mais feliz do mundo”. Os amigos dizem que deveria fazer stand up. “Para você ver como a obra e o autor têm que se separar”, fala, encontrando na repórter uma certa resistência neste quesito. Ele assegura, no entanto, não ser aprisoonado pela angustia.
O livro, garante, é 90% imaginação. Mas a vida real se infiltra como água nas fendas: a infância em Maranguape Zero, a adolescência nos anos 90, o casamento em Olinda, as viagens de ônibus para observar o Recife, o blog Angústia Criadora, que mantém há 14 anos, e o livro anterior, O espetáculo da ausência.
Na prosa, porém, é o Recife que respira: “Tudo acontece aqui. (…) É uma cidade que carrega o mundo dentro de si.”
O fim que não acaba
O homem de megafone anunciando o fim do mundo na Nossa Senhora do Carmo. A correria na parada de ônibus não pela salvação, mas pela condução que chegou. O Cine Glória em chamas. O calor que obriga ao torpor e ao riso.
Essas cenas não são ficção exagerada: são, como ele diz, “histórias que conseguem fazer as pessoas refletirem”. São pequenas revelações de que viver é estar sempre no limiar entre o que se perde e o que se mantém.
Em seus contos, o ponto final nunca é definitivo para Ney Anderson. “Uma história nunca acaba na verdade, mesmo quando o personagem morre.”
Indagado, afinal, se estava construindo ou demolindo com suas palavras, o escritor que nasceu ao ler Dom Quixote, amadureceu ao ler pernambucanos como Raimundo Carrero e Clarice Lispector, responde: “Acho que eu estou construindo coisas novas. Eu acho que eu, digamos assim... Essa resposta pode se conectar, né? Eu acho que eu destruo para poder construir”.
Volta tudo…

A história desta matéria começou assim, depois de uma recomendação da Alta Côrte dos leitores cujos apartamentos ameaçam seus edifícios com o peso dos livros.
“Acho que você pode ser um vampiro. Que currículo enorme é esse para quem tem 40 anos? Quantas vezes você viveu?”, perguntou a repórter.
“Um vampiro? É mesmo?” respondeu o escritor, pego de surpresa. Rindo sem muita intimidade com seres que derretem ao sol. Ele está muito mais para o Batman e Gotham, segundo reivindicou, mas somente - somente -, quando escreve.
“Às vezes eu me acho mais velho em relação à idade que eu tenho, de verdade. Mas, acredite, sou feliz, uma pessoa alto astral mesmo”, assegura.
O que nos lança do desafio ver o livro com olhos bem abertos para alguém que "abre os pulmões de uma Recife onde quem respira são os leitores", como bem disse o escritor Tito Leite.
Ney Anderson escreve como quem observa a cidade como um anjo tocando a trombeta, anunciando o fim para lembrar que ele já está acontecendo — e que ainda há beleza para ser vista.
Recife, “a Gotham City” do escritor, continua pulsando. E o apocalipse, como ele insiste, é todo dia. A salvação é para os fortes. “Venha a nós o vosso reino”.
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