Quando a literatura negra ocupa o centro — e o Recife escuta
Há datas que escapam do simbolismo superficial. O 20 de novembro é uma delas. Não pertence só ao feriado, nem aos discursos preparados. É um marco que exige ação, memória e posicionamento. É nesse contexto que o Festival Pernambucano de Literatura Negra chega ao Recife, no dia 27, em sua quinta edição.
São cinco anos de uma insistência bonita: a de reunir escritores negros de Pernambuco — e de fora — para reafirmar que a literatura não é reduto de poucos, mas campo de batalha, memória e sobrevivência. O evento é gratuito, aberto ao público e instrumento importante na luta antirracista.
Idealizado pela jornalista e escritora Jaqueline Fraga, finalista do Prêmio Jabuti 2025, o festival deixa claro que a literatura negra não é nicho, nem exceção. É parte da produção cultural que o país insistiu em ignorar. A cada edição, o evento amplia debates e forma novos leitores, fortalecendo uma cena que há muito tempo existe, mas que nem sempre encontra espaço para ser vista.
Mulheres negras no centro — e não mais nas margens
O tema deste ano — “Mulheres negras no centro da literatura” — aponta para uma mudança de posição que deveria ser estrutural. Essas mulheres sempre escreveram, pesquisaram, orientaram caminhos; o que faltou foi o reconhecimento. A curadoria da edição, assinada por Odailta Alves, escritora, atriz e ativista, reforça a importância de organizar um festival que não só celebra autoras negras, mas as coloca como referência.
As homenageadas deste ano traduzem essa força. Inaldete Pinheiro, uma das fundadoras do Movimento Negro em Pernambuco, dedicou sua carreira a produzir livros que tratam da cultura afro-brasileira e enfrentam o racismo desde a infância. Sua obra constrói memória e educação.
Já Cida Bento, autora de Pacto da Branquitude, é uma das principais pesquisadoras sobre raça e desigualdade no Brasil. Seus estudos desmontam estruturas e obrigam o país a olhar para o incômodo que preferiu evitar por décadas.
Um encontro que costura ancestralidade e futuro
A programação começa às 14h, no auditório Dom Helder Câmara, na UNICAP, no centro do Recife. O local é simbólico: universidades historicamente filtraram quem podia entrar, quem podia pesquisar, quem podia falar.
O festival ocupa esse espaço com mesas de debate, sarau, palestra e música, ampliando a circulação de obras e ideias que transformam o cenário literário pernambucano.
O sarau de abertura e a sessão de autógrafos reúnem Camila Mendes, Iyadirê Zidanes, Jessicalen e Vitória Oliveira, autoras que têm consolidado trajetórias importantes na escrita contemporânea.
Em seguida, a mesa “O fortalecimento da identidade negra na literatura”, com Inaldete Pinheiro, Mariana Andrade e mediação de Kemla Baptista, discute como autores negros seguem criando obras que afirmam identidade e pertencimento em meio a estruturas que ainda tentam restringir esses espaços.
Logo depois, o debate “Reparação e reconhecimento: ancestralidade guiando novos futuros”, com Cida Bento e mediação de Carla Teixeira, aborda caminhos coletivos para que a literatura negra avance não só em visibilidade, mas em políticas efetivas de incentivo e permanência.
A programação inclui também a palestra “Desafios e estratégias do jornalismo negro e cultural em Pernambuco”, com Giovanna Carneiro, que joga luz sobre disputas narrativas dentro das redações e dos portais de notícia.
O evento termina com apresentação musical de Evelli Eller, lembrando que a produção artística negra é múltipla e atravessa todas as linguagens.
Por que ainda precisamos afirmar o óbvio?
Há quem questione a necessidade de um festival de literatura negra em 2025. O argumento costuma ser o mesmo: “literatura é universal”. É uma frase bonita — e perigosa — quando usada para apagar quem sempre foi empurrado para as bordas. O universal, afinal, nunca foi neutro. Ele sempre teve cor, classe, sotaque. E quase nunca foi preto.
Quando o festival coloca mulheres negras no centro, não cria privilégio: corrige um descompasso histórico. E, ao fazer isso no Mês da Consciência Negra, reforça um debate que não cabe em comemorações esvaziadas. O encontro amplia repertórios, forma leitores e confronta estruturas que tentam manter a narrativa sob controle.
A palavra como território — e ferramenta de mudança
O Festival Pernambucano de Literatura Negra não é apenas um evento cultural. É um movimento que reúne autoras, leitores, produtores e pesquisadores para afirmar que literatura negra não apenas existe — ela transforma.
Ela alcança escolas, bibliotecas comunitárias, universidades, clubes de leitura. Ela abre passagem para crianças que nunca encontraram personagens parecidos consigo nas páginas dos livros. E modifica o modo como o Brasil se entende como país.
O festival faz aquilo que as instituições demoraram a fazer: garantir visibilidade, circulação e reconhecimento a quem sempre produziu conhecimento. E faz isso com consistência, pesquisa, método e compromisso social.
Serviço — para quem quiser ocupar esse espaço
5ª edição do Festival Pernambucano de Literatura Negra
📅 27 de novembro, a partir das 14h
📍 UNICAP – Auditório Dom Helder (bloco A – térreo)
Rua do Príncipe, 526, Boa Vista — Recife
🎫 Entrada gratuita
🔗 Mais informações: negrasou.com.br/festival | @festivaldeliteraturanegra_pe | @negrasouoficial
Saiba mais sobre as homenageadas
Salatiel Cícero: reconhecimento merecido
O pernambucano Salatiel Cícero é um dos convidados do Ministério da Cultura para o lançamento da Rede Nacional de Comunicadores Populares, em Brasília. O encontro integra o projeto Propulsão Comunica, dentro do Programa Nacional dos Comitês de Cultura, reunindo comunicadores de várias regiões para formação e articulação em rede. Reconhecido pelo trabalho dedicado à cultura da Zona da Mata Norte, Salatiel atua em fotografia, audiovisual, podcast e comunicação cultural, com destaque para projetos como Nossa História, Nossa Memória e Brinquedos Populares. Premiado nacionalmente pela Fundação Cultural Palmares, ele celebra a participação: “Estou muito feliz de ter participado deste evento... vai fortalecer nossa rede de comunicadores e os diálogos para além das nossas fronteiras”.
Ipojuca realiza Festival Consciência Hip Hop com programação gratuita
O município de Ipojuca realiza, no dia 23 de novembro, o Festival Consciência Hip Hop, em Porto de Galinhas, dentro das celebrações do novembro negro. A programação gratuita começa às 17h, na Rua da Esperança, com shows de artistas locais e nomes reconhecidos da cena, como Bione e Zé Brown.
O evento reúne apresentações de MCs da região, sets de DJs, grafitagem, batalha de rimas e rodas de diálogo sobre cultura urbana e identidade negra.
Segundo o diretor do festival, Jau Melo, a proposta é fortalecer a cultura de rua e ampliar o protagonismo da juventude periférica. A iniciativa integra o edital Ipojuca Criativa, com recursos da Política Nacional Aldir Blanc.
Serviço: dia 23/11, a partir das 17h, na Rua da Esperança, Porto de Galinhas. Entrada gratuita. Veja o teaser abaixo.
Recife fortalece ações do Novembro Negro com agenda antirracista
A Prefeitura do Recife realiza, ao longo de novembro, uma série de ações do Novembro Negro, com foco na igualdade racial e no enfrentamento ao racismo. A iniciativa, coordenada pela Secretaria de Direitos Humanos e Juventude, inclui Oficina de Libras, Caravana de Direitos nos Terreiros, a 15ª Marcha da Capoeira – Zumbi dos Palmares, além do Mercado Afro e formações educativas.
A gestão também participou de agendas de mobilização e fortalecimento das políticas antirracistas, como o Encontro da Juventude da Unegro e a Caminhada dos Terreiros de Pernambuco, reforçando o combate à intolerância religiosa.
“O trabalho da gestão é para fazer do Recife uma cidade antirracista…”, afirmou o secretário Marco Aurélio Filho. A programação segue até 29 de novembro em vários pontos da cidade.
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