O que sustenta uma vida? A trajetória de Débora mostra que o Estado pode ser mais
Aline Moura
Carregando na bagagem experiências de sobra no Diario de Pernambuco e na Folha de Pernambuco, jornais em que atuou em todas as áreas, exceto esportes, Aline Moura integra o time do Tribuna Online PE. E com o seu olhar jornalístico, através da coluna “Pernambuco que encanta”, busca valorizar o que há de melhor nos municípios pernambucanos.
Dias depois de protestos que pararam o país em defesa da vida das mulheres, não há como começar esta coluna Pernambuco que encanta por outro lugar. A paisagem política ainda está marcada pelos cartazes, pelos tambores e pelas vozes que pedem que nenhuma mulher seja tratada como peça descartável.
Nesse cenário, falar de Débora Andrade não é escolha; é urgência. Ela coordena o Núcleo Especializado de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar, no Recife, e sua trajetória funciona como lembrete de que o Estado pode deixar de ser apenas repartição cinzenta e se tornar andaime firme, escora colocada no momento certo, cimento que impede que vidas inteiras rachem de vez.
A planta baixa do recomeço
Débora nasceu em Aracaju, no estado de Sergipe, em uma casa que nunca passou por reforço estrutural. A separação dos pais, quando tinha por volta dos 10 anos, não foi só um drama doméstico; foi o primeiro abalo que correu pelos alicerces, abrindo fendas nas paredes emocionais daquela infância.
A pobreza avançou como infiltração, silenciosa, mas constante, tentando corroer o pouco que havia. Mesmo assim, havia ali um elemento de resistência: a mãe, que assumiu o papel de alicerce invisível.
Enquanto fazia faxinas e limpava corredores de escola onde ela estudava, depositava, sem discursos grandiosos, uma argamassa diária de possibilidade.
Cada turno de trabalho era como aplicar mais uma camada de concreto para que a filha não desabasse junto com o entorno.
Sustentação de emergência
Nesse período, o Estado não entrou em cena como solução mágica, mas como sustentação de emergência. Um projeto social chamado Criança Cidadã abriu espaço para que Débora não desmoronasse junto com a vulnerabilidade que via nos colegas do programa: crianças que dormiam em invasões, que vendiam nos sinais, que já conheciam o peso da rua antes mesmo de conhecer a adolescência.
Mais adiante, um curso técnico, num instituto federal, funcionou como laje intermediária. Professores serviram como arquitetos, orientando escolhas, empurrando horizontes. E, quando a bolsa integral do Prouni chegou, foi como erguer um andar inteiro numa construção que, à primeira vista, não tinha nem fundação suficiente.
A partir dessas vigas — algumas públicas, outras familiares — Débora projetou algo que parecia inalcançável para quem nasceu em território tão frágil: uma profissão que lida justamente com o desabamento alheio, uma função pública que exige firmeza, e uma responsabilidade que agora se estende sobre outras mulheres que, como ela um dia, tentam impedir que a vida despenque.
A arquitetura da Justiça
E foi desse edifício erguido a muitas mãos — mãe, Estado, escola, acaso e teimosia — que Débora saltou para a vida adulta. Ao assumir o cargo público, não levou apenas o conhecimento técnico conquistado nos livros, mas toda a memória do terreno instável de onde veio.
É por isso que, quando chega ao Núcleo Especializado de Defesa da Mulher, ela não enxerga apenas processos, despachos e estatísticas. Vê estruturas humanas prestes a ceder. E entende que seu trabalho, agora, é oferecer às outras o que um dia segurou os próprios pilares: escora, abrigo e chance de reconstrução.
A Defensoria, instituição destinada a quem possui renda de até quatro salários mínimos ou não consegue arcar com custos jurídicos, tornou-se para ela mais do que local de trabalho; tornou-se o canteiro onde tenta subverter a lógica segundo a qual apenas quem tem dinheiro pode proteger a própria dignidade.
Não há romantização nisso. Há método, estratégia e compromisso com uma engenharia social que, quando funciona, previne tragédias.
No Recife, Débora coordena, desde 2023, o núcleo responsável por acolher mulheres que chegam em ruínas emocionais, afetivas e financeiras.
Ela acompanha de perto uma rotina que tem parece uma roda viva. A violência doméstica atingiu mais de 38.625 pessoas em Pernambuco até o final de novembro, bem como o feminicídio, que fez quase 80 vítimas. Mas é nesse cenário que o núcleo age como força-tarefa para estabilizar o terreno e permitir que essas mulheres levantem novas paredes para si mesmas.
O canteiro de recomeços
Em 2025, mais de doze mil mulheres passaram pelas salas do núcleo. Muitas chegam após longos ciclos de violência, carregando nos ombros o peso de decisões atrasadas pela dependência financeira, pelas pressões familiares ou pelo medo de desmoronar de vez. A equipe faz o que é possível para que nenhuma delas enfrente sozinha a reconstrução.
Uma das iniciativas do núcleo, o Grupo Reflexivo de Mulheres, levou vítimas de violência a museus e espaços culturais. Pode parecer detalhe, mas é gesto arquitetônico: quando alguém passa anos dentro de um ambiente emocional estreito, incapaz de ver outras janelas possíveis, o contato com a arte abre vãos, reposiciona vigas internas, amplia o horizonte.
A cidade que queremos
A história de Débora é sobre a ascensão possível em terreno adverso. Não porque ela seja exceção heroica, mas porque aponta para o que acontece quando sociedade e Estado se comportam como arquitetos responsáveis.
Toda mulher que chega ao Núcleo, fragilizada e desconfiada, carrega consigo a esperança de que ainda exista solo firme em algum lugar. E quando encontra acolhimento, proteção e orientação jurídica, descobre que reconstruir não é tarefa solitária.
Permitir que essas mulheres sustentem suas próprias estruturas é mais do que política pública; é projeto civilizatório. Em um país que discutiu nas ruas, recentemente, a urgência de proteger as vidas de suas cidadãs, histórias como a de Débora lembram que a defesa da mulher não é uma obra pronta. É uma construção permanente.
E o encanto de Pernambuco, nesta semana, não está apenas em paisagens ou manifestações culturais. Está também em quem, todos os dias, impede que vidas inteiras desabem.
Klester Cavalcanti - "Matou uma matou todas"
O jornalista pernambucano Klester Cavalcanti poderia ter escolhido o silêncio confortável, mas preferiu o risco. Em Matou uma, matou todas, ele não reivindica “local de fala”; reivindica responsabilidade.
Num país onde o feminicídio destrói famílias inteiras e deixa crianças sem mãe e sem pai, o jornalista entende que a conversa não pode ser monopólio das mulheres — os homens precisam entrar nela, e não como opinião gratuita, mas como compromisso ético.
O resultado é um livro sensível, atento às ausências e às cicatrizes, que ilumina o que já deveria ser evidente: combater a violência contra mulheres não é uma pauta feminina; é uma tarefa coletiva. Klester faz isso com precisão, humanidade e coragem. E, neste momento em que o país ainda escuta o eco dos protestos que uniram vozes em defesa das mulheres, seu trabalho chega como gesto necessário — e urgente. Veja entrevista completa dele aqui
Quando o palco é coletivo, o som fica maior
O novo documentário de Larissa Lisboa faz mais do que registrar uma turnê: ele escora, com inteligência e afeto, um capítulo urgente da música feita por mulheres negras e majoritariamente LGBTQIAPN+ em Pernambuco. Ao revelar bastidores e quem carrega o peso real das produções, o filme desarma a ideia de que o palco é o único lugar onde a arte acontece. A inquietude aqui não é pose estética: é método, coletivo e político. E, num cenário que ainda insiste em apagar essas vozes, ver tantas mulheres abrindo caminho juntas é mais que cinema — é reparação em movimento.
O gesto de assumir parte da reparação
Hoje, circulei por temas em que a sociedade falhou: violência contra a mulher, desigualdade racial, precariedade, ausência do Estado. Mas a coluna mostra; em cada caso que alguém decide agir — seja com arte, com jornalismo ou com coragem pessoal, uma vida pode se transformar.
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PÁGINA DO AUTORPernambuco que encanta
A coluna Pernambuco que encanta, do Tribuna Online PE, revela histórias inspiradoras dos municípios pernambucanos e seus moradores. Com olhar sensível, informativo e analítico, valoriza as riquezas humanas, econômicas e culturais do estado, mostrando quem transforma comunidades com criatividade, coragem e afeto.