Nas ruas do Recife, drama dos carroceiros x pressão dos defensores da causa animal
Protesto no Centro do Recife expõe choque entre tradição, sobrevivência e pressão ambientalista
Com colaboração de Carlos Simões
O conflito entre carroceiros e defensores da causa animal ganhou um novo capítulo nesta segunda-feira (7). Insatisfeitos com as propostas da Prefeitura do Recife para substituir a tração animal, trabalhadores que dependem das carroças há décadas bloquearam vias importantes, marcharam pela Avenida Agamenon Magalhães, ocuparam o Parque 13 de Maio e concentraram o protesto em frente à Câmara de Vereadores, na Rua Princesa Isabel.
Eles contestam os valores oferecidos pela gestão municipal, rejeitam as bicicletas elétricas e afirmam que a proposta não garante renda, não preserva a cultura do ofício e ainda retira deles o que chamam de “dignidade sobre quatro patas”. Agora, pedem que o Ministério Público intervenha, uma vez que eles recorreram ao Governo de Pernambuco, que não os recebeu.
“Não somos agressores de animais. Somos trabalhadores”
Durante o protesto, cavalo e carroça seguiram juntos. Entre gritos, buzinas e faixas improvisadas, um discurso se repetia: a rejeição ao fim de uma prática passada de pai para filho.
Rodrigo Vaqueiro, carroceiro há décadas, diz que todos estão sendo punidos por erros de poucos.
“Querem punir os cidadãos junto com os maloqueiros que maltratam animais. A gente não maltrata. Trabalha. Cuida. Acorda de madrugada para tirar capim. Se tiver maltrato, somos os primeiros a denunciar”, afirmou.
Ele defende uma alternativa que vem sendo ignorada poder público: emplacar carroças e identificar os animais com chipes. “Se o carroceiro fizer errado, a população filma, tira foto da placa e ele perde o direito, igual a qualquer motorista.”
Indenização rejeitada e bicicleta vista como “injustiça”
Hoje, quem entrega cavalo e carroça recebe R$ 1.200,00 por animal e por veículo, além da possibilidade de adquirir uma bike elétrica no valor de R$ 6 mil que eles pagam no crédito.
Para quem vive da tração animal, a conta não fecha.
Segundo um rapaz que se identificou como Gabriel, que protestava com o grupo, o valor não cobre o preço real dos animais — alguns avaliados em até R$ 8 mil. Ele também vê a bicicleta como inviável para transporte de carga. Na Várzea, por exemplo, é comum ver carroceiros levando água mineral em suas carroças e passeando com a família.
“Querem que a gente dê um cavalo que custa R$ 8 mil e pague mais R$ 6 mil numa bicicleta. A gente vai fazer o quê com essa bicicleta? Vai pagar para trabalhar? Vai pedalar como turista? Isso é injusto. Não dá para trabalhar assim”, disse.
De acordo com Gabriel, alguns cavalos estão sendo levados para o abate. “Teve um cavalo pampo de bege que foi apreendido por Romero e Andreza de Romero no Coque. Um cavalo que passou oito anos de vida, oito anos na mão de um carroceiro, e dois meses na mão de Romero, dois meses na mão de Romero, foi morto. Porque chegou no interior, ele foi doado pro interior e foi para charqueado no interior. Então era melhor ele continuar na mão do carroceiro ou ele ir pro abate.”
Identidade, afeto e família: o elo que não entra na planilha
Muito além do aspecto econômico, a retirada dos cavalos tem causado um abalo emocional, segundo relatos.
Samuel, carroceiro que aprendeu o ofício na infância, se emocionou ao falar do vínculo com o próprio animal. “O cavalo é parte da minha família. Meu filho ama. Tem carroceiro que só usa duas vezes por semana. Não é só trabalho. É vida. É alegria.”
Ele contou ainda que muitos trabalhadores são analfabetos, idosos ou não têm habilitação — o que inviabilizaria migrar para motos ou veículos motorizados.
“Isso está mexendo com a estrutura das famílias. Eu crio meu animal com amor. Eu trabalho duas vezes com o cavalo na semana, se você tirar esse animal de mim, vocês não tem ideia do que é tirar um animal de uma pessoa? Meu filho ama meu cavalo, às vezes a gente vai para a praia...”
No protesto, muitas críticas foram feitas ao deputado estadual Romero Albuquerque Andreza Romero, do gabinete de Proteção e Defesa dos Animais.
Sem apoio de políticos de peso
Desde o fim de semana, vídeos circularam nas redes sociais convocando carroceiros para o ato — inclusive um menino de cerca de 11 anos anunciando presença no protesto. O movimento ganhou força rapidamente e ocupou ruas centrais.
Segundo o repórter Carlos Simões, que acompanhou tudo ao vivo, o grupo afirma que tentou ser recebido pelo Ministério Público, pelo prefeito e pela governadora Raquel Lyra. “A governadora não quis falar com a gente porque é época de eleição”, reclamou um dos manifestantes.
Trânsito desviado e protesto sem confronto
A CTTU deslocou equipes para organizar desvios, garantindo fluxo de veículos sem grandes congestionamentos. As carroças permaneceram na Princesa Isabel durante a tarde, com clima tenso, mas sem registros de confrontos.
Um ofício que se despede — e não aceita o fim
Enquanto ambientalistas veem avanço, carroceiros enxergam uma ruptura dolorosa. Há quem aceite a mudança e já tenha trocado cavalo por bicicleta elétrica. No total, apenas 6 carroceiros entregaram seus cavalos até agora. Mas a maioria — especialmente os mais antigos — resiste.
Entre lágrimas, indignação e memórias, o drama deles se escancara nas ruas do Recife:
o medo do desemprego, o apego ao animal, o sentimento de injustiça e a defesa de uma tradição que o tempo tenta encerrar.
Do outro lado, cresce a pressão por uma cidade sem tração animal — pressionada por denúncias de maus-tratos, propostas modernizadoras e uma legislação que impõe prazo final.
Entre esses dois mundos, está um relógio que anda rápido: até janeiro do próximo an o, a prefeitura quer por definitivo das carroças.
E nenhuma das partes parece disposta a recuar.
Prefeitura mantém decisão e começa novo censo nesta terça-feira (18)
A Prefeitura do Recife inicia, nesta terça-feira (18), uma nova rodada de cadastramento dos carroceiros que ainda utilizam tração animal na cidade. O censo tem o objetivo de ampliar o número de condutores incluídos no Programa Gradual de Retirada dos Veículos de Tração Animal e encaminhá-los aos benefícios oferecidos pela gestão municipal.
Em nota, a prefeitura afirmou: “A Prefeitura do Recife informa que deu início ao Programa Gradual de Retirada dos Veículos de Tração Animal com o pagamento de indenizações e a concessão de benefícios pela entrega voluntária de cavalos e carroças. Neste mês de novembro, a gestão municipal já indenizou um primeiro grupo de carroceiros, além de destinar crédito para a compra de bicicletas elétricas e vagas de emprego na limpeza urbana da cidade. Os benefícios são concedidos conforme a escolha de cada condutor. Os beneficiados participaram do primeiro ciclo do censo, realizado em junho. Nesta terça (18), a gestão municipal iniciará uma nova rodada de cadastramento, a fim de ampliar a participação de condutores e encaminhá-los aos benefícios do programa.”
O município diz que já concluiu o pagamento das primeiras indenizações e entregou os benefícios previstos na etapa inicial. Os condutores que aderiram voluntariamente ao programa receberam compensações financeiras pela entrega de cavalos e carroças, além de crédito para aquisição de bikes elétricas e oportunidades de trabalho na limpeza urbana.
A gestão destaca que o programa vai além da substituição dos veículos. Segundo a prefeitura:
“Além das indenizações pela entrega voluntária do cavalo e da carroça, das vagas de emprego na limpeza urbana e das opções de microcrédito, o programa dará acesso a uma rede de qualificação profissional e apoio ao empreendedorismo, com a disponibilização de mais de 60 cursos profissionalizantes. Entre as opções, há formações para eletricista residencial, mecânico de instalação e manutenção de ar-condicionado e cabeleireiro básico.”
O programa prevê o fim definitivo da tração animal no Recife até 2026.
Veja matéria completa de Carlos Simões no Jornal da Tribuna 1ª Edição, apresentado por Artur Tigre. É só clicar no link que já entra direto.
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