Hemingway - Bronté - Rowling: trindade maravilhosa
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O dia da morte de Shakespeare e Cervantes batizou o Dia Mundial do Livro em 23 de abril, uma semana antes de celebrar o dia da literatura brasileira. O mês de julho também poderia ser escolhido para uma comemoração parecida para o mundo das letras por trazer o nascimento de três nomes de grande importância para a arte literária, cada qual um mestre em criar e recriar a realidade através das palavras. A mera citação de seus sobrenomes já desperta uma aura imaginativa que inspira e cativa leitores, não importando onde ou quando estes estejam.
Paulo Coelho disse certa vez que o sofrimento pode ser esquecido quando podemos flutuar por cima das nossas dores.
Nesse sentido, Ernest Miller Hemingway, nascido em 21 de julho de 1899, foi ao pé da letra por toda sua vida, vivendo aventuras reais em várias partes do mundo desde bem cedo. Como voluntário da Cruz Vermelha, aos 19 anos, aliou-se aos italianos na primeira guerra sofrendo ferimentos graves, que quase lhe custaram a vida, mas que o aproximou da enfermeira Agnes Von Kurowski. Se apaixonaram, mas quis o destino que seguissem caminhos divergentes, levando o autor a fazer do episódio a essência de seu romance “Adeus às Armas” (A Farewell to Arms), publicado em 1929.
Mais tarde, no final da Segunda Guerra, foi testemunha do desembarque da Normandia, um divisor de águas no conflito mundial. Um homem de palavras diretas, frases curtas, capaz de transformar sua vida em rico material para retratar emoções. Pappy, apelido que adotou, viveu intensamente, e fez de sua vida material para histórias capazes de envolver o público leitor, nunca disfarçando o espírito jornalístico que abraçou desde cedo, e que foi sua profissão. Se envolveu na Guerra Civil Espanhola, e desse episódio escreveu “Por Quem os Sinos Dobram?” (For whom the bells toll), publicado em 1940, inspirando música em canções da banda Metallica em 1984, e de Raul Seixas em 1979, levando a obra de Hemingway à dimensão da cultura pop.
Meu primeiro contato com sua obra foi lendo o conto “As Neves do Kilimanjaro” (The Snows of Kilimanjaro), originalmente publicado em 1936. Seu tom sombrio, imerso no contexto de uma grande aventura, foi impactante para mim e provocou uma reflexão sobre a finitude e a brevidade da vida e, que por isso mesmo, urge que esta seja vivida intensamente.
E em seus 61 anos, Papa Hemingway levou essa intensidade passional à flor de sua pele, e assim compartilhou com o público uma parte de seu complexo mundo interior. Foi parte da “geração perdida”, como chamado o grupo de intelectuais e escritores expatriados que passaram noites de bebedeira e festas na Paris dos loucos anos 20. Parte do espírito desse período de sua vida foi absorvido pelas páginas de “E Agora Brilha o Sol” (The Sun Also Rises) que publicou em 1926.
Nos seus últimos anos morou em Cuba, um período reflexivo em que esteve abatido por arrependimentos e frustrações. Depois desse período, no entanto, veio o prêmio Nobel de literatura conquistado em 1954 pelo seu livro “O Velho & O Mar” (The Old Man & The Sea), publicado dois anos antes, e também agraciado com o Pulitzer. O livro impactou seus leitores com questões existenciais abordadas em uma história cuja simplicidade era a essência de seu estilo direto, mas quase também uma despedida uma vez que o prolífico autor repetiu o fatídico fim de seu pai, cometendo suicídio em 2 de Julho de 1961, quando suas obras já haviam passado por adaptações cinematográficas de sucesso. Reza a lenda que o personagem Maria, de “Por quem os sinos dobram?, fora escrito desde o início pensando em Ingrid Bergman, que a interpretou no filme de 1943.
Dona de um estilo completamente oposto, nascida em 30 de julho de 1818, Emily Jane Bronté, fez de “O Morro dos Ventos Uivantes” (Wuthering Heights) seu único romance narrando uma história de vingança cuja essência estava séculos à frente de sua publicação original em 1847, em plena era Vitoriana. Na época mulheres eram desconsideradas de qualquer atividade intelectual, por isso a autora usou o pseudônimo Ellis Bell para driblar a ridícula mentalidade vigente, e conseguiu. Abalou o público leitor ao construir uma história sem heróis, imbuído de amoralidade, desprovida dos clichês narrativos do gênero.
Ao contrário de Hemingway, Bronté carregou seu romance de descrições e adjetivações, valorizou o cenário dos desolados charcos ingleses como reflexo de seus personagens repositórios de sentimentos de revanchismo, rejeição, ambição, mais ódio que amor, características desconfortáveis sobre a natureza humana. Talvez por isso, Emily foi mal compreendida pelos críticos de seu tempo.
Heathcliff e Cathy são a personificação da ruína humana, vingativos e interesseiros, distantes do idealismo romântico. A autora, a mais reclusa das irmãs Bronté, deixou muito pouco material sobre sua vida, morrendo prematuramente de tuberculose aos 30 anos, um ano depois da publicação de “O Morro dos Ventos Uivantes”. Até hoje sua obra é adaptada, seja para o cinema, para a Tv (chegou a ser novela brasileira em 1967) e para a música, na voz da britânica Kate Bush em canção homônima de 1977. Li e reli a obra de Bronté, e sempre me senti atraído por sua narrativa hipnótica, e clima fantasmagórico que não esconde uma visão ácida sobre a ascensão social e econômica desmedida, a mentalidade aristocrática ou o papel relegado a homens e mulheres na sociedade de sua época.
A também britânica Joanne Rowling é a caçulinha do trio, nascida em 31 de julho de 1965 e invadiu o mundo literário despertando o interesse do público jovem e tornando-se um verdadeiro fenômeno da cultura pop.
"Harry Potter & a pedra filosofal” foi publicada pela primeira vez em 1997, e a cada sequência, de um total de 7 livros, fez toda uma geração crescer junto com seu bruxinho de 11 anos, fazendo a obra de Joanne a série literária mais vendida da história. Filas se formavam nas madrugadas que antecediam o lançamento de cada volume, apoiada na clássica batalha entre o bem e o mal, mas falando também de temas como adolescência, amadurecimento, legado familiar, preconceito, vida e morte.
Mesmo com todo esse sucesso teve que se esconder inicialmente por trás das iniciais de seu nome artístico, J.K. Rowling, e ainda usou o pseudônimo masculino Robert Galbraith para alcançar uma fatia de público que a rotulava como escritora de um gênero só. Assim como sua personagem Hermione, perseverou; e hoje, a Pottermania comemora 20 anos do início das adaptações cinematográficas que impulsionaram os personagens a um patamar indissociável da mentalidade pop.
Embora mais recente que Hemingway e Bronté, não se deve menosprezar a importância de J.K para a contemporaneidade. Diferenças de gênero literário, linguagem e apelo popular variam de época para época, e J.K soube deixar sua marca fazendo do mundo da bruxaria uma alegoria para questões comuns no nosso mundo de trouxas.
Cada um desses autores tocou o público leitor de uma forma única, foram além do que Aristóteles considerava válido, pois ao contrário do que ele afirmou a literatura não é uma mera imitação, vai além do tempo e seu alcance só é restrito pela imaginação. O céu não é o limite e o mês de julho podemos certamente celebrar seus nomes cujo impacto na arte é inegável. Como popularizado pelo pensador americano Norman Vincent Peale, e cantado por Victor Kley, eles miraram na lua, mas acertaram as estrelas.
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