Morte no Nilo
Dirigido e protagonizado por Kenneth Branagh, o longa estreia nos cinemas nesta quinta-feira (10)
No início dos anos 80, conheci Agatha Christie (1890-1976) através das publicações do saudoso “Círculo do Livro”. A Rainha do crime é uma das escritoras mais adaptadas para o cinema; e a chegada às telas de “Morte no Nilo” (Death on the Nile), adiada devido à pandemia, um dos lançamentos mais esperados desde o sucesso de “Assassinato no Expresso do Oriente” (Murder on the Orient Express) em 2017.
Dirigido e protagonizado por Kenneth Branagh, na pele do célebre detetive belga Hercule Poirot, ambos tiveram suas primeiras versões filmadas nos anos 70. No caso de “Morte no Nilo”, publicado originalmente em 1935, John Guilhermin (1925-2015) reuniu um elenco estelar que incluía Bette Davis, Mia Farrow, Olivia Hussey, Angela Lansbury, George Kennedy, David Niven, Maggie Smith e Peter Uistnov como o detetive Hercule Poirot, no primeiro de um total de 6 incursões pelo Agathaverso, termo ainda não empregado na época.
A história da milionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot) assassinada em sua lua-de-mel à bordo de um navio a vapor no Egito foi escrita durante a viagem da autora pelo Nilo, acompanhada de seu segundo marido, o arqueólogo britânico Max Mallowan (1904-1978). Agatha viajou à bordo do barco a vapor SS Sudan, que serviu de inspiração para o SS Karnak, palco de um crime que desafiará as habilidades dedutivas de Poirot. A Rainha do crime também hospedou-se no tradicional hotel Old Cataract, construído em 1899, em plena era do colonialismo britânico no Egito, sendo este incluído em sua narrativa hipnótica. Em 1978, na filmagem do diretor John Guilhermin, o hotel foi modificado para reproduzir a mesma decoração e disposição do ano em que Agatha esteve lá.
Embora Linnet Ridgeway, seja apresentada no livro como uma jovem de 20 anos, no filme ela é vivida pela atriz israelense, e super heroína nas horas vagas, Gal Gadot (Mulher Maravilha), de 36 anos. O diverso grupo de passageiros e tripulantes do SS Karnak ainda traz Letitia Wright (a Suri de “Pantera Negra”), Annete Benning (Beleza Americana), Emma MacKey (Sex Education), Rose Leslie (Game of Thrones) e Armie Hammer (Veronica Mars), que tornou-se persona-non-grata desde que foi denunciado por abuso sexual, e até mesmo prática de canibalismo, se distanciando o máximo possível da divulgação do filme. A fórmula do filme junta um passeio turístico de luxo por paisagens exóticas, um crime hediondo e um desfile de grandes estrelas do cinema, comandado pelo britânico Kenneth Branagh (que também dirige “Belfast”, indicado ao Oscar 2022). Esse engenhoso jogo de fantoches e labirintos detetivescos guarda algumas diferenças entre o livro e o filme. Já começando pelo anuncio do crime no final de “Assassinato no Expresso do Oriente”, direcionando Poirot a uma nova investigação, sendo que no livro Poirot está de férias no Egito, e o crime somente ocorre quase na metade da narrativa. O Coronel Race, que auxilia Poirot no livro não aparece no filme, sendo substituído por Bouc, personagem de Tom Bateman do elenco de “Assassinato no Expresso do Oriente”.
Agatha Christie fez de seu detetive belga, Hercule Poirot, um dos maiores personagens do romance policial. Baixinho, com um indefectível bigode e sempre orgulhoso de suas pequenas células cinzentas, Poirot é até hoje a criação mais popular da autora britânica, tendo protagonizado sua própria série de Tv pela ITV, estrelado por David Suchet entre 1989 e 2013. Além de sua excentricidade e elegância europeias, Poirot é meticuloso em sua abordagem e nem um pouco modesto de sua capacidade dedutiva, comparável a Sherlock Homes. Tanto um quanto o outro dividem preferências, carregam uma legião de admiradores e estão no mesmo pódio entre os maiores investigadores da literatura.
Seu modus operandi analisa psicologicamente os suspeitos e deduz detalhes com um olhar clínico de admirável precisão. Sua baixa estatura contrasta com seu ego, este bem adequado ao seu primeiro nome derivado do semi-deus da mitologia grega. Poirot sempre se demonstra orgulhoso de sua capacidade observadora. Todas essas características garantiram ao personagem um lugar de honra no imaginário dos amantes de histórias policiais.
Dois anos antes do falecimento de Agatha Christie, a autora autorizou a publicação de “Cai o Pano” (Curtain) em que o detetive belga morre em uma história escrita durante a Segunda Guerra Mundial e mantida em um cofre no banco durante décadas. Em Agosto de 1975, o renomado jornal New York Times publicou a morte do personagem na seção Obituário, marcando o fim de um ciclo no gênero que coroou Agatha como Rainha e fez de Poirot uma celebridade entre seus semelhantes.
Poirot protagonizou 39 livros, sendo 33 romances policiais além de contos diversos reunidos depois. Agatha criou outros detetives como a abelhuda Miss Marple e o investigador Parker Pyne, mas Poirot sem dúvida ocupa uma posição privilegiada no imaginário popular dos amantes do gênero. O primeiro Poirot do cinema foi o desconhecido Austin Trevor no filme “Alibi” (1931), adaptação de “O Assassinato de Roger Ackroyd”. Trevor retornou ao papel em “Black Coffee” (1931) e “Lord Edgware Dies” (1934). Tony Randall foi o segundo ator a interpretar Poirot em “The Alphabet Crimes” (1965), adaptação de “Os Crimes ABC”, que traz a curiosidade de ser o único encontro entre Poirot e Miss Marple (Margareth Rutherford). Em 1974, Albert Finney conquistou uma indicação ao Oscar por sua personificação de Poirot em “Assassinato no Expresso do Oriente”, chegando ainda a ganhar o BAFTA, o Oscar do cinema britânico. Seguidos vêm Peter Ustinov, David Suchet e agora Kenneth Branagh, que espera-se retorne para outras incursões nas telas, provando que ao menos para os fãs da narrativa policial, o crime deve compensar.
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