O Fato Espera. A Leitura Não.
Entre o que acontece e o que imaginamos que aconteceu
Eis que a distância entre o que acontece à nossa volta e o que parece acontecer vai se abrindo. O moderado vira crise; decisão vira batalha. Respiramos um ar mais pesado do que o necessário. O mundo muda, mas não mudamos a forma como o enxergamos.
Os fatos caminham lentos, mas suas interpretações não. Elas chegam antes, tão rápidas quanto as expectativas que criamos, os ressentimentos que mantemos, as memórias que acionamos. Quando o fato finalmente pousa diante de nós, já não importa: a leitura que faremos dele chegou primeiro, acumulada e pronta. Era tudo o que precisávamos: uma confirmação.
Nesta semana no LinkedIn escrevi um post sobre governança e sucessão que ocorreu em um telejornal. Compartilhei uma leitura de cenário, entre tantas possíveis. Vieram comentários, mensagens, teorias, certezas. A repercussão chamou atenção, não surpresa. Tenho um defeito: sempre olho o avesso.
E o avesso me trouxe um ponto curioso: a governança que mais influencia qualquer debate não é a das instituições, mas a que opera dentro de cada um. Uma governança cognitiva, feita de filtros, preferências, memórias, manias e atalhos. Há algo íntimo e cognitivo decidindo o que veremos, o que ignoraremos e o que transformaremos em verdade.
Esse mecanismo acentua conflitos e nos faz criar uma sensação permanente de colapso, mesmo quando ele não existe. É daí que nasce a ansiedade social. Deixar o fato respirar antes da opinião talvez seja um ansiolítico necessário. O mundo está cheio de certezas para dúvidas que ainda nem tivemos tempo de ter. Paramos de reagir ao mundo para reagir ao espelho que colocamos entre nós e ele.
Moldamos o acontecimento para que caiba em nossas narrativas, aquelas que carregamos sem notar. Entender já não importa. Procuramos dentro do que aconteceu um ponto que sustente o que pensávamos, porque isso dá alívio, dá coerência e evita revisões incômodas das nossas certezas.
Discutimos menos os fatos e mais as projeções que fazemos sobre eles. O acontecimento virou coadjuvante da leitura que escolhemos fazer. Não há interpretação: há confirmação.
Correrei o risco do ridículo e direi: vivemos a Era Halo. Um combustível silencioso que responde à lente que colocamos sobre algo ou alguém, favorável ou desfavorável. Essa lente faz com que tudo seja interpretado por ela. Nada mais importa além do halo que o antecede. É uma forma elegante, quase confortável, de não ter o trabalho de duvidar. A convicção oferece a falsa calma de não enfrentar o incerto.
Os debates deixaram de ser espaços de ideias para se tornar máquinas de ressonância e validação emocional. Cada lado usa o que acontece no mundo como argumento para reforçar o que já acreditava. Quando o fato não ajuda, remodela-se o fato. Criam-se intenções, ampliam-se ruídos, inventam-se sentidos. Sempre na direção que confirma, nunca na que explica.
Talvez tenhamos travado a guerra errada. Não precisamos interpretar melhor, precisamos interpretar menos. Diminuir a pressa com que encaixamos tudo em nossas certezas. Deixar que o fato exista antes da opinião, pois interpretar deixou de ser entender; virou confirmar.
E o post continua lá, ressoando em leituras que vão muito além do que eu escrevi.
Definitivamente, o mundo precisa de mais poesia.
Continuo o assunto nas redes: Instagram: @jaquespaes; LinkedIn: in/jaquespaes
Jaque Paes é Executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
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