Honra ao mérito
“Talvez não seja a resposta que muita gente queira ouvir...”
Jaques Paes
Executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
Luana Lopes Lara, 29 anos, tornou-se a bilionária self-made mais jovem do mundo. Mas não há exatamente o que comemorar: ela é brasileira. Nós, brasileiros, somos destruidores de heróis. Em 2018, Ozires Silva, que dispensa apresentações, disse isso em uma entrevista, ao comentar a resposta que havia recebido de membros do comitê avaliador do Prêmio Nobel à pergunta: por que brasileiros nunca receberam um Nobel?
Nesta semana, Luana foi questionada por uma jornalista: “Se você tivesse nascido em outro contexto, chegaria aonde chegou?”. Depois de um sorriso envergonhado, veio a resposta: “Talvez não seja a resposta que muita gente queira ouvir, mas sim…”.
Ao formular a pergunta, não se tratava apenas de uma jornalista, mas de um discurso recorrente: a tentativa de definir o que é mérito, quais trajetórias são passíveis de reconhecimento e, sobretudo, quais formas de inteligência, trabalho e contribuição permanecem invisibilizadas.
Desde que existem sociedades, existem hierarquias, critérios de prestígio, formas de distinção e narrativas para justificar quem manda e quem obedece. Ao que me parece, quem questionou Luana sobre meritocracia esqueceu de olhar para trás: o que a colocou no púlpito que a habilitou a fazer a pergunta foi a própria meritocracia, travestida de melhor qualidade de ensino, de uma oportunidade mais bem aproveitada, de um conselho recebido, de uma indicação, no contexto em que viveu.
Perdemos a crítica quando passamos a tratar o mérito como algo falso, esquecendo que ele nunca é neutro. O mérito é moldado socialmente, e o ser humano é feito para viver em sociedade; portanto, não há como fugir das heranças culturais.
Um breve olhar antropológico mostra que o camponês não se culpava por não ser rei, assim como o servo não se sentia incompetente por não mandar. Sabia-se que não há cadeiras para todos no topo. O discurso contemporâneo, ao afirmar que todos podem (ou que não podem), não apenas infla uma narrativa desconectada da realidade, como também produz culpa, ansiedade, burnout, ressentimento e, por que não, inveja.
Reconheço, mesmo que a contragosto, que a meritocracia pode legitimar desigualdades. Ainda assim, recuso-me a aceitar que ela seja coercitiva. Penso que o problema não é a ideia de mérito, mas a pretensão de que ele exista fora da cultura, da história e das relações de poder. A sociedade, em todo e qualquer nível, é regida por relações de poder.
A meritocracia é um jogo inevitável que todos jogamos. Inevitável não significa justo, mas é estruturalmente funcional. São as estruturas simbólicas que organizam o mundo; os sistemas de classificação são as oposições que dão sentido à realidade. Não há verdadeiro sem falso.
Mesmo que corrigíssemos todas as desigualdades de acesso, a sociedade ainda produziria hierarquias, porque nossa mente pensa por oposição, organiza por diferença e produz valor por contraste. A meritocracia é apenas a forma moderna de torná-las cognitivamente aceitáveis.
Talvez seja duro admitir, mas a meritocracia não é um sistema de justiça; é um sistema classificatório. Não é um desvio moral moderno, mas uma atualização estrutural de um mecanismo de classificação bastante antigo. Toda sociedade é meritocrática: ela sempre escolhe o que vale. Caça, força física, linhagem, idade, sabedoria ritual, proximidade do sagrado, posse de terras, alfabetização, diplomas, capital financeiro, tudo isso já foi “mérito” em algum momento da história.
Transformar critérios culturais em leis naturais e desigualdades históricas em escolhas individuais talvez não seja uma falha exclusiva da meritocracia, mas da nossa disposição em aceitar, sem questionar, esse e tantos outros conceitos, como se fôssemos vítimas de uma situação que nós mesmos criamos, afinal, nossa mente também é falha.
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Jaque Paes é executivo, mestre em gestão empresarial, consultor, mentor de profissionais em transição de carreiras e professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV
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PÁGINA DO AUTOREntre Prateleiras
Esta coluna parte da ideia de que gestão, sustentabilidade, projetos e estratégia não vivem em gavetas separadas. “Entre Prateleiras” é o espaço onde essas fricções aparecem e onde decisões, narrativas e contradições se encontram. Seu propósito é trazer à superfície o que costuma ficar guardado para provocar conversas que façam diferença no mundo que a gente vê lá fora.