Selma Lopes: a dubladora que dá voz a Whoopi Goldberg e Marge Simpsons
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Selma Lopes é uma das mais belas vozes de nossa dublagem. Deu vida a inúmeras personagens em filmes e animações, sendo até hoje a voz de Marge Simpsons, além da atriz Whoopi Goldberg, Mama Udi em “A Princesa & o Sapo”, Rosemary Harris, a Tia May em “Homem Aranha 2” e “Homem Aranha 3”.
Carreira prolífica que inclui rádio, teatro e TV, Selma Lopes, em conversa memorável se mostra testemunha viva de décadas de carreira em que fez parte da infância e juventude de muita gente, incluindo para mim. Hoje ministrando aula em curso de dublagem, entre um trabalho e outro, a atriz – nascida há 93 anos – nos fala de desafios, de saudosismo e de profissionalismo para uma área de grande dignidade na indústria do entretenimento.
Veja abaixo a entrevista concedida a Adilson Carvalho
Adilson Carvalho: Quando o rádio era a principal mídia a levar informação e entretenimento ao público, lá estava Selma Lopes como uma das grandes estrelas do meio. E de repente, surge a dublagem. Como foi essa transição em que uma estrela do rádio inicia uma carreira na dublagem em uma época em o processo trazia grandes restrições e desafios?
Selma Lopes: Sem dúvida alguma. Na época eu estava na rádio Mayrink Veiga e a dublagem era uma nova profissão que surgia. Alguns atores, principalmente os de rádio e do teatro, foram contatados para fazer testes que verificariam se se adaptariam a esse novo sistema de trabalho.
Para quem já fazia rádio foi muito fácil, ao menos para mim foi assim. O rádio foi uma verdadeira faculdade onde fiz de tudo um pouco: cantei, apresentei programas de auditório, fiz programas humorísticos e fiz radionovelas. Na época foi o Orlando Drummond quem me convidou para que fossemos fazer teste na Herbert Richards. O diretor de dublagem da Herbert me selecionou depois de um teste no qual fiz a voz do rato Ligeirinho; entre outros personagens em paralelo, e partir daí fui uma das primeiras artistas contratadas pela Herbert Richards. Nunca mais deixei de dublar desde então. Durante alguns anos o estúdio funcionava em cima de uma boite na rua Senador Dantas no centro do Rio de Janeiro. Depois que um incêndio destruiu a casa noturna, o estúdio se mudou em definitivo para a Tijuca. Trabalhei muitos anos para a Herbert Richards, até seu fechamento.
Você era exclusiva da Herbert Richards, ou também fazia trabalhos para outros estúdios?
Eu trabalhei para outros estúdios também. Como era uma profissão nova chegando no pais, foi feito um acordo assim: Eu dava dois dias para um estúdio, dois dias para outro, mas a minha principal casa era a Herbert Richards.
A dublagem no Brasil começou no final dos anos 50 e ganhou caráter obrigatório nos anos 60, quando o então presidente Jânio Quadros sancionou a lei que determinava o uso da dublagem. Até que os anos 70 chegassem problemas devem ter surgido ao longo desse caminho. Como foi isso até que dubladores tivessem maior reconhecimento?
No início havia uma coisa ou outra, mas nada definitivo, pois ainda estavam fazendo experiências com o sistema de dublagem. Com a lei facilitou muito o trâmite para a instituição da dublagem, mas inúmeros problemas existiam. Foi uma verdadeira guerra, lutávamos contra muitas coisas, e na época tínhamos alguns líderes como o companheiro de profissão, que já não está mais entre nós, Jorge Ramos – um precursor dessa profissão maravilhosa, o Luiz Manuel também, e outros colegas que estavam de frente, iam a sindicatos e emissores de tv. Havia muita confusão na época quanto à forma de pagamento fosse por hora, por mês ou por loops (segundos corridos de gravação). Brigamos muito até chegarmos aos tempos de hoje em que prevaleceu o pagamento por hora, sendo a primeira hora indivisível. Somente uma coisa não conseguimos, que as emissoras de TV pagassem um percentual a ser pago aos dubladores pelos trabalhos gravados. No início até havia uma obrigatoriedade, quando chegamos a criar uma sociedade chamada ASA em que isso era cobrado das emissoras de TV, mas infelizmente o empresariado, mais forte, venceu. Durante um ano ou um ano e meio consegui receber alguma coisa, mas depois .... Eu tenho até hoje um recibo da TV Educativa que me fez um pagamento por trabalho. Infelizmente, acabamos perdendo esse direito ao longo do tempo.
Incluindo na passagem da dublagem para outras mídias ocorre esse descaso?
Lamentavelmente perdemos tudo isso.
Não é verdade que o saudoso Waldyr Santana, a primeira voz de Homer Simspon, tentou advogar a causa desses direitos de repasse dos trabalhos?
Sim, ele cobrou na justiça. O único erro que ele cometeu é que ele entrou sozinho na justiça. Se ele tivesse entrado junto com outros colegas, talvez tivéssemos ganho. Ele entrou com processo único, e lamentavelmente perdeu. Muito desigual, pois até os dias de hoje os filmes passam na TV, reprisam inúmeras vezes e não recebemos nenhum repasse. Nada. E quando as emissoras de TV vendiam esses trabalhos para fora do país, hoje já nem tanto, mesmo assim o que ainda recebemos era nada vezes nada.
Quanto às mudanças técnicas, a tecnologia melhorou a qualidade da dublagem, não?
Consideravelmente. Antigamente os filmes rodavam naquelas máquinas antigas, e arrebentavam muito. E aí, tínhamos que parar, na sala de consertos tinham que colar o filme, e esperávamos isso para retomar a gravação. Isso tudo durou um bom tempo, até que com o avanço da tecnologia os filmes já não arrebatavam, já não precisávamos mais parar. As máquinas que passavam os filmes também foram se modificando.
Na dublagem existe o termo boneco para o ator dublado. Alguns dubladores marcaram a história da TV como Juraciara Diacovo que dublou a atriz Stefanie Powers no clássico seriado “Casal 20”, Elcio Romar que foi dublador do ator Michael Douglas e Borges de Barros que dublou Jonathan Harris, o Dr. Smith do seriado “Perdidos no Espaço”. O próprio Borges de Barros conheceu seu boneco quando Harris esteve no Brasil e foi entrevistado pelo saudoso Capitão Aza. Isso era espontâneo, ou uma exigência de algum estúdio americano?
Absolutamente. Nós não éramos os bonecos, os atores que dublávamos é que eram os bonecos. Isso é algo que nós dubladores criamos. Nós é que desenvolvemos entre nós mesmos.
Entre seus trabalhos se encontra a dublagem da Vovó Piedade (Libertad Lamarque) em “A Usurpadora”. Poderia falar desses e de outros trabalhos como a voz de atrizes do cinema hollywoodiano?
A novela A Usurpadora é sempre citada em conversas. Eu a dublei também em duas outras novelas. Correu uma história de que essa novela seria reprisada novamente por outro canal de Tv, mas nada foi confirmado. Foram trabalhos maravilhosos e tive o prazer de dublar, por exemplo, Bette Davis, Gloria Grahame, Angela Lansbury, Rita Hayworth (Sangue & Areia), Whoppi Goldberg e Carmen Miranda. Anos mais tarde, foi produzida uma peça de teatro que falava da Carmem Miranda e era projetado um texto sobre ela que eu lia. A Angela, eu dublei em “Se Minha Cama Voasse” (1971), no qual eu cantava. Este foi um dos primeiros filmes da Disney a mesclar realidade e fantasia. Fiz na profissão muita coisa. Dublei a atriz Michael Learned na série “Os Waltons” que sempre terminava dizendo “Boa noite John Boy! Boa noite Mary Hellen.”
Como é feita a gravação da dublagem? Coletivamente ou individualmente?
Inicialmente dublávamos todos juntos. O resultado era bem melhor, mas depois de um tempo passamos a gravar separados. O diretor de dublagem faz a escalação do elenco, marca um horário com cada um. Ninguém grava mais junto. Isso é ruim porque assim você não ouve o tom que seu colega usou. Isso interfere na interpretação, e sinto falta do tempo em que dublávamos juntos. A dublagem tem que ser interpretativa, tem que passar o que personagem está vivendo. Hoje em dia é diferente, pois temos vozes maravilhosas, mas eles não interpretam, eles lêem. Para mim que dou aula, procuro ensinar a meus alunos que interpretar faz muita falta, é necessário. Eu fui a primeira dubladora a chamar a atenção para a importância da interpretação na dublagem. No filme “Tudo isto e o céu também” com Charles Boyer, falei com o Lauro Fabiano, excelente colega e diretor de dublagem, da necessidade de dar emoção a diálogos como “Você vai à casa da Jane amanhã?” Hum hum ou “Você foi à casa de John?” HumHUm. Esse “Humhum” tem um som, pode corresponder a um sim ou a um não, depende da intonação. As respirações e pequenas reações não eram feitas. O Lauro observou isso e encaixaram-se as coisas.
Além da dublagem, você tem passagens pelo rádio, teatro e TV. Como foram esses momentos de sua carreira?
Fiz 26 peças de teatro, incluindo “Gota d’agua” com Bibi Ferreira, que ficou em cartaz por um ano e quatro ou cinco meses. Fiz “Por Falta de Roupa Nova, Passei o Ferro na Velha?” com Henriqueta Brieba, que teve grande apelo popular. Também fiz “O Peru”, uma peça francesa e “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, que foi posteriormente adaptada para a TV. No dia da estreia da peça, a censura entrou no teatro e não permitiu que as cortinas se abrissem, suspendendo a apresentação. Anos mais tarde, com o fim da censura, voltamos a encenar a peça e eu fiquei com o papel da Dona Pombinha. Foi maravilhoso.
Lembro de um programa de rádio intitulado “A Turma da Maré Mansa”. Era divertido fazer um programa de humor no rádio?
Eu sou a mãe da Maré Mansa. Quando a rádio Mayrink Veiga foi fechada, em 64, eu fui chamada pelo proprietário da loja Maré Mansa, para voltar a fazer o programa que eu já havia feito na Rádio Mauá. Inicialmente o programa era chamado “Noite Impecável”, e eu consegui convencê-los a contratar os colegas humoristas com quem trabalhei na Mayrink Veiga. Por minha sugestão, o programa passou a se chamar “A Turma da Maré Mansa”. Trouxe de volta o Zé Trindade, Altivo Diniz, Suely May, Ezio Bastos e Matinhos. O programa foi um sucesso por volta das 8 horas da noite. No Rio de Janeiro só se ouvia “Turma da Maré Mansa”. Naqueles tempos de governo militar, a rádio Mayrink Veiga não tinha nada a ver com o governo, não tinha nada a ver com Jango, nada a ver com Brizola, mas foi fechada e quase virou TV Mayrink Veiga no canal 2, mas a frequência acabou sendo dada para a Tv Educativa. Já a frequência da rádio foi dada à Rádio Globo. Em 64 estávamos na rádio fazendo um programa que foi interrompido no meio, quando o pelotão entrou no auditório e selou os estúdios do Sumaré. Saímos praticamente de armas nas costas.
Você testemunhou todas essas mudanças, e na Tv trabalhos como a novela “Uma Rosa Com Amor”, com Marilia Pera e Paulo Goulart, e o humorístico “Balança, mas não cai”. Que outros trabalhos contaram com seu talento?
Fiz todos os programas de Chico Anysio como “Chico City” e “Chico Total”. O Chico Anysio trabalhou no rádio Mayrink Veiga e foi lá que ele criou o personagem do Professor Raymundo. E quando ele foi para a TV, ele nunca esqueceu dos colegas. Ele, aos poucos, foi chamando todos os colegas e, por isso e muito mais tenho uma enorme gratidão por ele. Ele fez muito pelos colegas, principalmente os mais velhos. A TV é muita ingrata com os mais velhos, mas o Chico sempre ajudou a todos, e no programa dele, ele não deixou que isso acontecesse.
Você dublou várias animações como a Madame Patilda de “Duck Tales”, da Hanna Barbera fez a secretária Rosemary de “Hong Kong Fu”, a Laura de “Os Muzzarellas” e Vassourinha de “A Feitiçeira Faceira”. Pipit Pipit Pow !!!! Tem alguma diferença dublar um filme e uma animação? É mais fácil ou mais difícil ?
Não vejo diferença. Para mim é uma criação igual, mas para cada tipo de desenho é uma voz. No clássico da Disney “Pinóquio”, eu faço a Fada do Carvalho, mas também faço o Pinóquio, quando ele canta. O menino que o dublava não sabia cantar, e o Telmo de Avelar, extraordinário tradutor e diretor, que fazia os textos da maneira ideal que um ator leria, já que o Telmo também era ator. Ele media as frases para que elas coubessem perfeitamente na boca dos bonecos que dublávamos. Atualmente, os desenhos são muito gritados e não imprimem a emoção e o humor adequados.
O que melhorou e o que piorou ao longo do tempo com todas as mudanças que aconteceram?
A tecnologia melhorou, mas o que piorou foi que muitos artistas hoje criticam os artistas que vieram do rádio. Mas quem veio do rádio tem o poder de interpretação que muitos dos novos não têm. Dando aula, muitas vezes coloco o texto em uma bancada como se fosse no rádio. Não temos a imagem, mas temos o texto. Interpretar como se tivéssemos a imagem. Tudo que aprendi, passo a meus alunos, inflexão, interpretação e respiração. Já voltei a dublar “Os Simpsons”; e mesmo já tendo sido vacinada duas vezes, estúdio tem muito cuidado. Usamos hoje o tablete para a leitura, e isso é como se fosse a leitura do texto do rádio. Não ver a reação do ator que dubla conosco é o que faz falta.
Selma, qual seu filme favorito?
Entre tantos posso dizer a animação “Rei Leão 2”, da Disney, na qual fiz a voz da Zira, a mulher do Scar, onde canto uma belíssima canção e também “ Em Busca do Vale Encantado” realizado por Steven Spielberg. Muito bonito.
A dubladora, humorista, atriz e radialista Selma Lopes também fez cinema?
Fui surpreendente com o convite para fazer “S.O.S Mulheres ao Mar 2” (2015) que foi rodado nos Estados Unidos. Vinte dias depois de voltar fui chamada para outra produção que foi concluída, mas não lançada, não sei o porquê. Também tive participação pequena em outros filmes. Encontrei pessoas que participaram comigo desse filme, mas que também não sabiam quando esse filme seria lançado. Nele faço uma italiana que não sabe uma palavra em Português. O filme se chamaria “Minha Familia Perfeita” ou “ A Nona”, mas até hoje não consegui descobrir o que houve com esse filme, que trazia Otavio Augusto, Isabele Drummond e Zezé Polessa, dos mesmos produtores de “S.O.S Mulheres ao Mar 2”.
Você foi casada com o humorista Mauro Faccio Gonçalves, o saudoso Zacarias de “Os Trapalhões”. Ele também fez algum trabalho na área da dublagem?
Não, fez uma tentativa, mas ele não gostava. Ele gostava mesmo era de criar tipos como o Zacarias. Ele tinha uma carga interpretativa e criativa enorme. Há humoristas na atualidade que criticaram a interpretação de “Os Trapalhões” e do “Chico Anysio”, mas quem são eles para julgar.
Não é porque fazem standup que eles tenham como julgar. O Mauro preferiu se fixar no tipo do Zacarias, e o fazia muito bem, inspirado em um tipo de sua cidade Natal. Anteriormente ele fazia um programa em que ele fazia um personagem chamado Moranguinho com o mesmo ar de ingenuidade que ele imprimiu no Zacarias, que ele aprofundou depois. Ele deixou sua marca. Foi um comediante maravilhoso e fez teatro também, foi indicado para o Prêmio Shell. Só tenho a engradecer o trabalho dele e do Chico. Os Trapalhões eram maravilhosos.
Somos todos grato, Selma. Que bom que você continua esse legado através de um curso de dublagem, e tenho certeza que seu talento ainda será muito valorizado e lembrado, não apenas por seus alunos, mas por todos seus fãs. Muito obrigado.
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