O sofrimento de uma população invisível na pandemia
Sem máscaras, álcool em gel e outros cuidados básicos da pandemia, moradores de rua padecem e veem colegas na mesma condição morrerem da doença
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Para quem não tem casa, cama e nem comida no prato todos os dias, fica difícil se preocupar em manter os cuidados para se prevenir contra a covid-19. Sem condições de usar máscaras ou fazer a higienização correta, a população que vive nas ruas tem sofrido, em silêncio, as consequências da pandemia.
Ao todo, de acordo com dados do Painel Covid, da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), 3.046 pessoas em situação de rua foram contaminadas pela doença do início da pandemia até o dia 30 de outubro deste ano. Dessas, 74 morreram. Vidas perdidas e um sofrimento invisível em meio ao caos provocado pelo coronavírus.
Quem já viu muitos amigos da rua morrerem foi uma comerciante de 36 anos. Ela foi parar nas ruas após ter de fechar sua loja de roupas por conta da pandemia.
“Conheço muita gente que morava nas ruas e morreu de covid. Pelo menos umas 10 pessoas. Eu já tive, há uns seis meses. Fiquei uns 10 dias mal", relatou ela, que preferiu não se identificar.
A jovem Bruna Alves Silva, 20 anos, conta que foi difícil passar pela pandemia, sobretudo no pico da doença, vendo as pessoas usando máscara, mas ela e os colegas da rua sem ter a proteção básica para evitar o contágio. Isso sem contar com álcool em gel ou sabão.
“Já tive muito medo de pegar covid. Nunca fiz teste, então, nem sei se peguei. Eu via as pessoas se protegendo e ficava com medo, porque eu não estava protegida e pensava que poderia morrer", desabafou.
O medo de contrair a doença é grande, mas, como evitar a contaminação quando não se tem nem um teto para morar e é preciso contar com a ajuda de desconhecidos?
"Não tem como se prevenir contra o coronavírus na rua. Além de tudo, o próprio cachimbo de crack já é um meio de propagar, porque vai de boca em boca. A cachaça também, roda de mão em mão", ponderou Cristiane Silva Oliveira, de 42 anos. Ela está nas ruas de Vila Velha e diz que vive nessa condição há dois meses.
De acordo com a infectologista Ana Carolina D'Ettorres, pessoas em situação de rua são mais vulneráveis à covid-19, e por isso foram um dos primeiros grupos a serem vacinados contra a doença.
Além da condição social, que não permite o isolamento adequado, essa população de pouco acesso ao sistema de saúde, muitas vezes, procura-o somente quando está com a doença em estágio avançado.
“Isso acontece também com outras doenças infectocontagiosas, como, por exemplo, tuberculose e HIV. Outro fator são as comorbidades não tratadas (hipertensão, diabetes), que os tornam ainda mais vulneráveis”, explicou a médica.
Uma outra limitação é a dificuldade de manter o uso regular de medicações, pela falta de controle de tempo e de armazenamento do remédio, além da insuficiência alimentar.
A lei define pessoas em situação de rua como um grupo de diferentes realidades, que tem em comum pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e falta de habitação regular, o que os leva a utilizarem lugares públicos como espaço de moradia – temporária ou permanente.
Com a crise econômica e financeira ocasionada pela pandemia, foi perceptível o aumento da população de rua, segundo o defensor público e membro do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Espírito Santo Tiago Luiz Bianco Pires Dias.
Ele destacou que as vulnerabilidades dessas pessoas se acentuaram com a pandemia, devido à falta de vagas em abrigos e unidades de habitação, importantes para a higienização pessoal, principal forma de prevenção contra a covid-19.
“É uma luta diária, porque a falta de abrigo significa ausência de lugar para higiene e alimentação, e isso acaba influenciando em falta de segurança e afetando todos os aspectos da vida da pessoa. Por isso, esses indivíduos precisam de uma política específica, como prioridade na vacinação, instalação de pontos de água públicos e locais de acesso à higienização”, ressaltou.
Insegurança alimentar
Para se manterem e sobreviverem, muitas pessoas que vivem nas ruas trabalham em serviços como limpeza de carros e venda de alimentos e produtos, por exemplo. Com o isolamento social e as pessoas cada vez mais em casa, a demanda de trabalho caiu.
“Com isso, a insegurança alimentar aumentou muito, porque antes do isolamento era mais fácil conseguir algum dinheiro. Com a pandemia e a crise econômica, ficou mais difícil”, pontuou o defensor público Tiago Luiz.
Menos de 20% completou esquema vacinal
Enquanto o Espírito Santo já chegou a 64% da população (público-alvo) vacinada contra a covid, a velocidade de imunização entre a população de rua anda a passos lentos.
Até o dia 30 de outubro, apenas 19% (284 pessoas) da população em situação de rua da Região Metropolitana (Vitória, Serra, Vila Velha e Cariacica) receberam as duas doses ou a dose única da vacina contra a covid-19, e 46% tomaram a primeira dose. No Estado, chegam a 88% as pessoas que receberam pelo menos uma dose de imunizante.
De acordo com a infectologista Ana Carolina D'Ettorres, apesar de não serem a maioria, há casos de pessoas que recusam a vacina. “Inclusive, representam uma boa parte de óbitos atualmente”, pontuou a médica.
Apesar de essa população não ter tido muita resistência em aderir à imunização, segundo o defensor público Tiago Luiz, um dos obstáculos é que são pessoas em trânsito, e é preciso uma constante atuação pública para completar os esquemas vacinais, conforme pontuou o defensor público.
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) explicou que o cronograma de vacinação de idosos, pessoas com comorbidades e deficiências teve início antes desse grupo. Assim, muitas pessoas em situação de rua foram vacinadas como idosos, com comorbidades ou pessoas com deficiência.
“Dessa forma, não é possível afirmar que a população em situação de rua não esteja devidamente vacinada, pois podem ter sido vacinados por faixa etária ou em situações já relacionadas”, informou.
“Somos o advogado deles”, diz defensor
Para garantir que pessoas em situação de rua tenham acesso aos direitos básicos, mesmo diante das vulnerabilidades, a Defensoria Pública atua como profissional jurídico desses cidadãos e realiza cobranças ao governo estadual e aos municípios, com relação a estruturas de acolhimento, alimentação e saúde.
“Nós somos o advogado deles. A Defensoria é o profissional jurídico que atua para defender os vulneráveis. Não só na defesa de pessoas pobres, mas também na daquelas com poucos recursos e com outras vulnerabilidades, como idosos e mulheres”, explicou Tiago Luiz Bianco Pires Dias, defensor público e membro do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, da Defensoria do Espírito Santo.
A vulnerabilidade dessas pessoas não se restringe somente à ausência da moradia: envolve insuficiência alimentar, impossibilidade de higiene adequada e atendimentos médicos, além de muitos passarem pelo rompimento do vínculo familiar e se encontrarem em situação de abandono. Como na pandemia isso se acentuou, exigiu do órgão uma atuação mais firme.
“A nossa maior luta hoje é conseguir vaga em abrigo. A Defensoria Pública do Estado, em conjunto com a Defensoria Pública da União, já enviou uma recomendação administrativa para alguns municípios recomendando o aprimoramento no atendimento da necessidade dessa população de rua, como a expansão e o fortalecimento do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop), e também para o fornecimento de auxílio material para esses centros”, afirmou Tiago Luiz.
O órgão também conseguiu atendimento médico para esses indivíduos e recomendou a limpeza urbana, para conservar os pertences de quem vive na rua. Outras ações realizadas foram o pedido de hospedagem noturna e de criação da casa da gestante, para auxiliar mulheres em situação de rua.
“A Defensoria Pública é o profissional jurídico que atua para defender os vulneráveis. Não só na defesa de pessoas pobres, mas também na daquelas com poucos recursos e com outras vulnerabilidades, como idosos e mulheres." Tiago Luiz Bianco Pires Dias, defensor público,
Serviço vai continuar no pós-pandemia
Após a pandemia, a atuação da defesa jurídica das pessoas em situação de rua irá continuar. A Defensoria Pública do Espírito Santo informou que pediu um plano de atuação dos municípios e, a partir das informações, irá analisar o que foi feito e poderá atuar de forma extrajudicial ou judicialmente, se for necessário.
“Vamos analisar toda essa situação, estudar o que foi feito e o que não foi e definir o horizonte a seguir, com foco na garantia dos direitos mínimos com dignidade”, disse o defensor público Tiago Luiz.
Vida nas ruas após aliciamento
Sob a promessa de uma vida melhor e um emprego dos sonhos, a cabeleireira Bruna Alves Silva, 20 anos, decidiu largar a vida simples na Bahia, há cerca de um ano, e vir para o Espírito Santo. Mas, quando chegou ao Estado, a jovem viu seus planos irem por água abaixo, ao descobrir que tinha caído na lábia de um aliciador.
“Eu cheguei no meio da pandemia, não tinha quase ninguém na rua, eu não conhecia nada. Um rapaz me trouxe da Bahia com uma proposta, porque eu mexo com cabelo e meu sonho é me tornar uma grande cabeleireira. Chegando aqui, era mentira. No segundo dia, ele me abandonou no sinal e tive que me virar só, até hoje”, contou a jovem.
Sem teto para morar, cama para dormir e renda para bancar custos com alimentação, a jovem diz que a única coisa que lhe restou foi pedir ajuda nas ruas.
"Durante o dia, eu peço dinheiro. Tem pessoas que ajudam, outras não, porque pensam que é para usar drogas. Comida eu peço na padaria ou em restaurante”, revela a jovem.
Bruna falou, ainda, sobre os momentos em que viveu no auge da pandemia da covid-19, no último ano. Uma das principais lembranças que a jovem tem foi sobre o período em que via as pessoas usando máscara e ela não.
“Já tive muito medo de pegar covid. Nunca fiz teste, então, nem sei se peguei. Eu via as pessoas se protegendo e ficava com medo, porque eu não estava protegida e pensava que poderia morrer sem realizar meu sonho. Na época, a prefeitura nunca me ofereceu máscara, nada disso”, conta.
A jovem, que ainda não foi vacinada, já ouviu falar de pessoas em situação de rua que perderam a vida pela doença. Ela também falou sobre as fiscalizações e as abordagens feitas pela prefeitura.
“A prefeitura já veio aqui uma vez, acho que é a fiscalização. Eles oferecem ajuda, perguntam se a gente quer ir para o Centro Pop. Acho o Centro Pop importante. Lá, dá para pegar comida. Eu enxergo esses programas como uma ajuda para nós que ficamos na rua", disse.
ENTREVISTA
De despachante aduaneira a moradora de rua
Quem vê Cristiane Silva Oliveira dormindo em uma barraca embaixo da Terceira Ponte, em Vila Velha, não imagina a história de vida da mulher, de 42 anos. Ela contou que já chegou a trabalhar como despachante aduaneira, mas, depois de passar por um casamento onde foi apresentada às drogas, sua vida desandou. Agora, ela vive nas ruas, em meio à pandemia da covid-19.
Tribuna Online - Como você veio parar na rua?
Cristiane Silva - Estou em situação de rua há dois meses. Tive uns problemas de família e quis sair de casa, porque não aguentei a barra.
Teve a ver com drogas?
Comecei com as drogas depois que casei com um rapaz que era usuário. Eu trabalhava como despachante aduaneira, já trabalhei para a Receita Federal. Ele, com ciúmes, não me deixou mais trabalhar. Começou a me aplicar drogas, aí eu caí nessa.
Já usei crack, heroína na veia, cocaína. Bebo, mas nesses dois meses estou limpa das drogas, graças a Deus. O paladar aumentou, o sono voltou, engordei.
Você tem medo da covid-19?
Eu sou do grupo de risco, tenho bronquite, sinusite, asma, então fico com preocupada quando minha garganta seca, quando tenho dor de cabeça, febre, coriza. Fico aflita, porque sei que são sintomas. Quando isso acontece procuro direto o hospital, tenho uma preocupação grande com minha saúde. Cheguei a fazer o teste PCR uma vez, mas deu reagente negativo. Pelo que eu saiba, nunca peguei.
Mas já passei por tanta coisa na minha vida: meu marido foi assassinado, minha mãe ficou paraplégica. Não tenho como perder mais nada. Deus me permitiu estar viva, então vou levando um dia de cada vez.
Aqui na rua, vocês recebem alguma ajuda?
A gente recebe comida de doação. Quando a fome está muito perversa, a gente cata latinha para vender. Ninguém vem ajudar com relação à covid, eu que corro atrás. Quem ajuda mais a gente é o Centro Pop. Lá tem psiquiatra, psicólogo e auxílio para recuperação de documentos. O psicólogo de lá me ajuda muito, tem até contato com a minha família.
ENTREVISTA
Fechou a loja na pandemia e foi viver nas ruas
O drama de comerciantes que fecharam as portas após a crise provocada pelo novo coronavírus foi ainda maior para uma ex-lojista de Cariacica. Além de perder o ganha-pão, ela ficou sem condições de arcar com as despesas da casa e acabou indo morar nas ruas. A mulher, de 36 anos, conversou com a reportagem do Tribuna Online, sem se identificar, e desabafou sobre a luta que enfrenta no dia a dia.
Tribuna Online - Quais as consequências da pandemia na sua vida?
Comerciante - Eu tinha uma loja de roupas em Cariacica há três anos, bem estável. Quando veio a pandemia, foram dois meses só, e não podia abrir mais. Ficaram cinco, seis meses sem poder abrir. Foram juntando aluguel e despesas, e eu tive que fechar. Muito comerciante quebrou naquela época. Não podia abrir nada. Não tinha como manter aluguel de loja, aluguel de casa.
Na época você morava com quem?
Eu era casada e morava com meus filhos. No início, tinha o auxílio de R$ 1.800, aí dava para se manter. Depois disso, só com R$ 300, fica difícil.
E como você faz para sobreviver?
Vendendo paçoca consigo de 70 a 80 reais por dia. Aqui na rua não tem como cozinhar e a marmita é cara. Já dormi com fome, é até difícil falar. Dependo de doação. O que eu ganho vai para as crianças, de 6 e 10 anos, e aqui eu me viro. Minha alegria é quando meus filhos vêm aqui e ficam um pouquinho comigo.
Quando chove, isso aqui alaga tudo. A gente fica molhado uns três dias, perde tudo. Da última vez, tive que ir nos prédios pedir cobertor e agasalho.
Eles também moram na rua com você?
Não, eles ficam com a minha mãe, mas às vezes vêm passar uma tarde comigo.
“Não dá para a gente fazer nada para se proteger do vírus. Ninguém nos ajuda." Comerciante de 36 anos,
Como se proteger da covid-19?
Não dá para a gente fazer nada para se proteger do vírus. Ninguém nos ajuda. Aqui só temos o Centro Pop, que é tipo um abrigo. A gente toma banho, tem café da manhã, almoço e café da tarde. Já fui lá umas duas vezes para almoçar. Eles ajudam muito. Eu cheguei a tomar uma dose da vacina. Depois descobri que eu tive covid-19, há uns seis meses. Fiquei 10 dias mal.
ANÁLISE
“Vivem em condição desumana”
Ana Claudia Simões, mestre em Políticas Públicas
"A população em situação de rua é um grupo de beneficiários de ação social que teve seus vínculos emocionais, familiares e sociais totalmente rompidos.
Eles se entregam às ruas por desamparo da família, falta de emprego, renda, por desesperança. Na rua eles conhecem o vício em drogas e álcool e o potencializam, perdendo o discernimento e acabam escolhendo não voltar ao convívio em sociedade.
Mas isso é uma opção muito sofrida, já que eles passam por preconceitos, discriminação, descaso e vivem em uma condição desumana. Por esse motivo, esse grupo depende muito das políticas públicas de assistência social que vão ofertar o abrigamento local para dormida, higienização, alimentação e psicólogo dos serviços básicos de saúde para o atendimento das mazelas que se agravam nas ruas, como doenças sexuais, gravidez não desejada. Na pandemia, eles sofreram muito porque não tinham esses equipamentos preparados.
O mundo não estava preparado para uma pandemia. Não existiam lugares suficientes para que acolhesse todas as pessoas em situação de rua que as mantivesse como a população geral, abrigadas dentro de casa, isoladas.
As políticas públicas podem e devem ajudar verdadeiramente esse grupo, oferecendo opções reais de tratamento para desintoxicação contra as drogas e simulação de capacitação para emprego e renda."
Repórteres: Ana Carolina Favalessa, Júlia Afonso, Kananda Natielly e Taynara Nascimento
Edição: Elisa Rangel
Editoração: Elisa Rangel
Revisão: Kikina Sessa
Infográficos: André Felix
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