Um itinerário rumo ao que virá
Leitores do Jornal A Tribuna
No mais das vezes, este tempo de passagem se divide entre retrospectivas e perspectivas. Como é certo que o que passou não passou por inteiro, e ainda sustenta uma agenda de lutas e luto, agora e à frente, parece pouco pertinente fixar o olhar para trás.
Mergulhados em múltipla tragédia, por ora, não há passado a contemplar, e sim uma nefasta continuidade a enfrentar.
Assim, parece convidativo mirar a direção que tem a potência da invenção e da reinvenção, propondo um itinerário para o amanhã de urgente transformação. É sobre mudar o rumo, já que não se pode modificar o rastro. Nesse caminho, é indispensável reforçar na bagagem esperança e coragem.
Virtude cardeal para Aristóteles, comecemos pela coragem. Sendo a virtude um valor ético-moral em ato, definido racionalmente como uma orientação equilibrada a nos guiar na justa via do meio, longe dos extremos do excesso e da falta, a coragem está entre os vícios da covardia e da audácia.
A coragem reside, pois, num ponto equidistante entre imobilidade amedrontada e impetuosidade cega. Coragem não é ausência de medo, muito menos redenção a ele, mas disposição para superação com firmeza de alma e serena razão. Em vez de reação desmedida, é ação comedida.
Da esperança... Como falar de esperança neste tempo? O que de pronto pode vir à mente é o aviso que Dante Alighieri fixou à entrada do Inferno, na sua Divina Comédia: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” – “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Seria o nosso caso, que num inferno já estamos? Não, 2022 tem bons motivos para acreditarmos na esperança!
Com as vacinas, a pandemia caminha para o fim. Se votarmos em favor de alguma normalidade “neurótica”, aquela que enxerga na ética dos limites, nas fatualidades e na Lei as bases da civilização humanística, temos reais chances de o país sair do infeliz desencontro com a perversão “normalizada”.
Hermann Hesse escreveu: “Após cada morte, torna-se-nos a vida mais delicada e preciosa”. Nem é preciso dizer da dimensão que a era de morte que testemunhamos imprime a essa observação tão crucial de Hesse quanto à impositiva reinvenção da existência.
“Meia-noite. Fim de um ano, início de outro. Olho o céu: nenhum indício. Olho o céu: o abismo vence o olhar. O mesmo espantoso silêncio da Via Láctea feito um ectoplasma sobre a minha cabeça: nada ali indica que um ano novo começa.” No poema Ano-Novo, Ferreira Gullar busca onde está o novo na transição do calendário solar.
Constatando que o novo não é óbvio, nem natureza, conclui: “Não começa nem no céu nem no chão do planeta: começa no coração. Começa com a esperança de vida melhor que entre os astros não se escuta nem se vê nem pode haver: que isso é coisa de homem, esse bicho estelar que sonha (e luta)”.
Que, com esperança corajosa e coragem esperançosa, nos reconciliemos com o nosso melhor e inventemos um ano ímpar e luminoso, dos sonhos – para cada um de nós, para todos nós.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.
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