Sem hora e sem local, todos são iguais diante do vírus mortífero
Leitores do Jornal A Tribuna
Em meio à atmosfera virótica que nos abraça com sua nociva nuvem, rasgos de angústia assombram corpos e almas encharcados de um mal-estar que muitas vezes é difícil de nomear.
Mas, apesar limites da linguagem e da opressão do que em nossa tirânica porção inconsciente se inscreve como inominável, é preciso insistir no exercício da palavra, o que nos ajuda a tomar consciência do que se vive.
Nesse caminho, para além do real da morte, e de morte aos milhares, o horror pervasivo ofertado pelo novo coronavírus me parece ser também o de nos fazer a todos provar de um cálice de concentrada dose de consciência do que seja a condição humana.
Numa trágica cena, sorve-se sem parar, aqui e em todo lugar, da poção amarga que nos intoxica com a verdade de que somos vocacionados irremediavelmente à morte certa em hora incerta, habitando sob o Sol um corpo que adoece, envelhece e fenece, eivado pela dor e sacudido pelo medo, vagueando em ambiente natural hostil e imprevisível, com “forças poderosíssimas, destruidoras”, em companhia de semelhantes agressivos e egoístas.
A descrição desse enredo de epopeia é de Freud, no magistral Mal-Estar na Civilização, livro em que igualmente cita três medidas com as quais buscamos suportar as limitações ao princípio do prazer, almejando evitar a todo custo o sofrimento, quais sejam: “derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela”.
As ciências participam da primeira categoria de enfrentamento; “as gratificações substitutivas, tal como a arte, são ilusões face à realidade, mas nem por isso menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que tem a fantasia na vida mental”; e há, ainda, as drogas e seus efeitos alucinantes.
Em linhas gerais, a saída está na construção de pactos civilizatórios fundados na fraternidade e na cientificidade. Ainda que esse caminho seja muito obstaculizado pelas adversas contingências do existir, não há alternativa aos humanos fora da civilização, para Freud: “a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos”.
Assim, ainda que e porque diante de tanta tragédia, façamos de remédio o que ora se apresenta como veneno. Experimentar dramaticamente a consciência de nossa desabonada condição, antes de nos adoecer, deve mesmo nos tornar mais aptos a inventar uma realidade com mais compaixão, generosidade, prudência e sensatez.
Com o otimismo da inteligência e o pessimismo da razão, à la Gramsci, incrementemos os fundamentos da civilização humanística. Desse modo, teremos alguma chance de produzir algum bem-estar efetivo e sustentado, livre de ilusões de onipotência e suas correspondentes fragilidades, especialmente neste tempo em que o real insiste em nos impor uma overdose da árdua verdade do humano existir.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor e pesquisador na Ufes.
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