O inventário dos dias e o sentido da vida
Leitores do Jornal A Tribuna
Apesar das variantes, mas devido aos imunizantes, algum retorno à rotina pré-pandemia já agenda estes dias que se equilibram em híbrido percurso ofegante. Entre presença e distância, concreto e digital, desejo e relutância, ímpetos e temores, oscilantes, já experimentamos um meio-normal.
Como ao ontem de antes do vírus nada é ou semelhante será, este, então, se torna um tempo de duplo inventário. Certamente em cálculo íntimo e solitário, é chegada a hora de se fazer um balanço do que restou e, essencialmente, de se depurar um sentido para o tempo extra que se ganhou.
Múltiplas dores de diversas e inumeráveis perdas latejam no coração da maioria absoluta dos brasileiros, descontados, por óbvio, o mumificado semblante dos perversos desumanos e a paz eterna dos negacionistas. Informa-se que, até este agosto, 74% dos brasileiros perderam para a Covid-19 pelo menos um parente, amigo ou colega. A pandemia não acabou, mas já formamos uma nação de sobreviventes.
Aos que ainda respiram num país sufocado por tantas mortes e males, cabem o luto e a luta. Nesse caminho de longo curso, na tarefa de ressignificação de uma existência esburacada, é preciso prestar atenção ao que é precioso à contingência da vida. De Sêneca, ecoando há dois milênios, talvez valha a pena decorar: “a expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente”.
Em meio à ignóbil morte em escala fabril, Viktor Frankl, sobrevivente de campos nazistas, anotou que buscar um sentido para a vida é “motivação primária”. Contudo, avisou: não se deve perguntar o que esperar da vida, mas, sim, o que a vida espera de nós. “Viver não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.”
O lugar das respostas às demandas e lições da vida são os dias que se sucedem no tempo do presente, temporalidade atravessada pela “lembrança presente das coisas passadas” e pela “esperança presente das coisas futuras”, mas que reina absoluta como a única dimensão existencial que realmente possuímos, conforme Santo Agostinho.
Assim, aos que alcançarem a outra margem do caudaloso oceano da morte virótica, e ainda que não se trate de prescrição de uma vida sob amnésia obtusa ou inconsequência estúpida, é fundamental ter em mente que imperioso mesmo é saborear cada segundo sob o Sol, sorvendo seus aprendizados e suas delícias.
Uma boa medida para esse banquete diário na escola da vida é dada pela poesia de Mario Quintana: “A vida anda nua – vestida apenas com o teu desejo!”. “Buscas a perfeição? Não sejas vulgar. A autenticidade é muito mais difícil”. E ainda: “No dia em que estiveres muito cheio de incomodações, imagina que morreste anteontem... Confessa: tudo aquilo teria mesmo tanto importância?”.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Mídia e Cotidiano e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.
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