Era de sobreviventes, hora de novo início
Leitores do Jornal A Tribuna
Nas redes e nas ruas, a cena ensaia o retorno da vida ao palco do normal. O ato trágico da pandemia ainda não teve seu “the end”, mas já se pode assistir a uma multidão de sorrisos sem a máscara da prudência. Em plena travessia virótica, testemunhamos proximidades como se já estivéssemos livres da doença da distância.
Com o avanço da vacinação, apesar dos negacionsimos, das variantes e das omissões mortíferas, a viva mancha da morte se encolhe a olhos vistos. Dessa forma, a ansiedade por algum regresso à normalidade de antes protagoniza os gestos numa transição nebulosa, lenta, inquieta e, por vezes, insana, rumo ao fim do terror pandêmico.
Mas, como que numa sina de desassossegos, a angústia da vez, a se constatar crescentemente à medida que caminharmos cada vez mais livres, é a tomada de consciência de que não há passado possível de ressuscitar. Não há para onde voltar, senão apenas o troféu da vida para seguir adiante.
Toda a paisagem de encontros e sorrisos e brindes, entre outras celebrações, faz até parecer que se trata de um retorno a um prévio modus vivendi. Mas é preciso ter em conta que não há destino em direção ao pretérito. Ainda mais quando existe um abismo de óbitos entre o antes e o agora e o adiante.
Os sobreviventes são outros daqueles que viviam antes de março de 2020. E seremos cada vez mais diferentes do que fomos. Pensamos e sentimos de modo diverso, atravessados pela vertiginosa consciência do desamparo estrutural que o novo coronavírus e sua avalanche de mal e perversão só fizeram aprofundar. Todas a experiências e interfaces se afetaram...
Ademais, e adicionando tragicidade ao inominável Brasil tornado cemitério de centenas de milhares de sua brava gente, agravam-se a fome, a miséria e as incertezas nesta pátria que alguns tantos por cento querem desalmada de vez, nada gentil para sempre.
Mas como a vida é, antes de tudo, perspectiva e na sua estrada de ferro não há estação de embarque para o passado, nem é permitido ficar parado na linha, o bilhete a se comprar é mesmo o da viagem rumo a um “novo início”.
“Novo início” é uma das mais belas elaborações de Hannah Arendt, para quem o fato de sermos seres políticos e aptos à humanidade sempre nos coloca “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito”.
Arendt salienta: “o novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza [...]. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular”.
Sempre lembrando que “o tempo só anda de ida”, conforme Manoel de Barros, renasçamos, pois! Essa é a exigência singular desta era de sobreviventes.
José Antonio Martinuzzo é pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise
de Vitória.
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