O dia a dia após a travessia
A vida que se abre para a reinvenção neste tempo de transição é um caminho de reencontros. E nesta hora em que buscamos pistas do antigo normal e tentamos, na luta e no luto, promover um novo início, passos, afetos e práticas que se perdiam no cinza da rotina do antes recobram a cor do encanto.
Aqui não se fala de grandiosidades, mas especialmente do comezinho... Ir ao teatro, imergir no cinema, abstrair no barzinho, curtir amigos, trabalhar no trabalho, repisar rotas que desenhavam nosso deslocar... Aqui se fala é desse mosaico cotidiano de miudezas que compõe o prosaico dos dias.
Caetano já cantou o óbvio que se oculta a olhos treinados para não enxergar a microfísica do costume. Neste finalzinho de clausura virótica, vale relembrar uma expressão comum nos interiores: “olha, para você ver!”. Aproveite e olhe para ver: o correr dos dias é um composto de sensações potenciais à espera do sabor da experiência.
Nesse reencontro com o que sobrou – de nós, do outro, da paisagem –, estejamos atentos à preciosidade de gestos, ações, cenários, percursos, olhares, sorrisos, saudações... Ocorrências que comumente se perdem nas repetições ou se empalidecem diante do foco tirânico das grandes metas, das corridas dos compromissos inadiáveis e das telas-ímã que capturam nosso olhar-atenção.
Não repitamos os erros pré-pandêmicos. Além de descondicionar o olhar, é preciso parar de passar pela vida como se ela estivesse mais adiante, no futuro do ali e do acolá, quando finalmente tivermos tempo. A vida é ao vivo – e não ensaio. Ao voltarmos à tona do abismo mortífero, é impositivo inventarmos um normal em que o presente e a presença de corpo e alma reinem na imperiosidade do agora.
O tempo é uma experiência. Uma duração que veste as indumentárias do presente, com os adornos do passado e as franjas do futuro. Ou seja, tempo é uma sucessão de intervalos de agora atravessados por memória e expectativa, como alertou Santo Agostinho.
Se o agora passa em branco, perdemos tempo, a commodity mais valiosa, posto que se gasta involuntariamente, não se recupera jamais e tampouco existe a chance de se comprar ou de se fazer estoque extra. Assim, o caminho é valorizar o consumo inevitável do nosso bem maior.
À época barroca, dois ditos latinos norteavam a experiência temporal: “Carpe diem” e “Memento mori” – “Aproveite o dia” e “Lembre-se da morte”. Por óbvio, os excessos do barroco setecentista não devem ser prescritos como norma a suplantar a virtuosidade e o equilíbrio. Mas que restem como inspirações a busca pelo belo exuberante e a vivência dos detalhes em todos os cantos da existência, aqui e agora.
“Mire e veja”, invocava Guimarães Rosa, e não deixe passar a oportunidade de saborear os dias, inclusive as preciosas minúcias que temperam as horas. Cultivemos as belezas que a gente ama, com a urgência de quem caminha para o fim.
JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é doutor em Comunicação, professor na Ufes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.