Existir em dose dupla e viver pela metade
O sol deste verão fulmina as sombras que restavam acerca da vida dupla que o existir contemporâneo demanda de imenso e crescente contingente de viventes. E não se trata de jogar luz em segredos, traições, maquinações...
Aqui, a questão é explícita: nestes tempos de entrada alucinante da civilização nas teias da digitalidade, a originária necessidade humana, demasiadamente humana, do olhar do outro para confirmar a nossa existência como sujeitos entra em vertigem.
Crescentemente, a busca pelo olhar do próximo vem saindo da condição de laço estruturante de nossa subjetividade para tornar-se vício a sustentar uma existência ancorada na visibilidade midiatizada. Tudo bem, é só um novo modo de saber-se vivo e criar vínculos! E é impositivo! Será?
Um prosaico caminhar já basta para testemunhar pessoas abstraídas da cena ao redor, mas focadas em capturar a melhor pose.
A fissura é produzir conteúdo acerca da mais “invejável” presença num mundo que, paradoxalmente, cada vez mais se ignora, em busca desvairada pela “presença” mais espetacular naquele mundo no qual o vir à luz é coisa de publicação e onde o existir é equação de atualização e engajamento.
Viver, já ensinaram os gregos, é experimentar os sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato). Estar morto é não mais sentir. Nada mais cabal e definitivo. No entanto, há novidades na seara do humano existir. Isso porque, a dócil técnica digital, como descreveu Milton Santos, acabou sendo destinada à construção de um outro território para experimentarmos os sentidos, ainda que não todos, cuja “materialidade” é formada por conexões informacionais.
De início, este “continente de bytes”, na definição de Muniz Sodré, era mera cópia ou “cobertura” dos eventos da vida experimentada na presença. No princípio, era espelho o “paraíso” criado no universo digital. Mas, com o alastramento das redes sociais, o que se assemelhava a um reflexo da vida vivida nos sentires do corpo está-se tornando crescentemente a própria razão de “existir”, e já nem é tão paradisíaco assim.
O ambiente e as tramas concretas da vida, com seus encontros, sensações, toques, emoções, delicadezas e asperezas, abraços e beijos, cheiros e sabores, vêm se tornando mera desculpa à produção de conteúdo – fotos, áudios, vídeos, animações, mensagens etc. – para atualizar intermitentemente a inforrealidade. O mundo sob o Sol serve apenas de palco àquele universo em que só há espectadores.
Se viver é experimentar os sentidos, será que, devotados ao vício do “existir” nos infoterritórios digitais, não estaríamos vivendo pela metade, ou menos que isso ainda? Submetendo todos os sentidos da vida – tanto as faculdades corpóreas do sentir quanto os propósitos existenciais – à escravidão do ver e do ser visto nas redes, não estaríamos nos limitando a uma existência precária e frágil? O que será do sujeito que substitui o humanizante olhar do outro pela algorítmica visualização alheia, e o faz como quem precisa de oxigênio para respirar? Respirar?!
José Antônio Martinuzzo é doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória